Caso do menino com vontade de comer doce.

Foi logo depois do final de mais um dia de aulas. Chegamos em casa, no nosso modesto sobrado do bairro operário paulistano do Cambuci, e a minha mãe tristemente falou para a minha avó: “ganhei esse copo de doce de goiaba de um aluno, mas, coitadinho, ele levou escondido no bolso da camisa uma colherinha, abriu o copo e comeu um pouco. Que judiação, que dó daquele menino!. Ele disse que a mãe pediu para depois devolver o copo”.

A minha avó se condoeu sinceramente. O meu pai logo pediu para a minha mãe fazer um outro doce para colocar naquele copo na hora da devolução. Todos ficamos entristecidos demais.

Consigo me lembrar da cena: passados alguns dias, a minha mãe fazendo um tanto de arroz doce e colocando no copo, apertando bem com a colher que era para caber mais. Por cima, uma generosa quantidade de canela. Tudo feito com a lentidão provocada pela tristeza daquela realidade longe de qualquer doçura.

Com esse acontecimento aprendi a experimentar a dor da pobreza no outro e tive muita, muita compaixão pelo menino, que nunca soube o nome. Uma criança com vontade de doce! Que emoção exasperante e eterna, o sabor que não vem à boca, o carregar aquele copo com uma cor convidativa, a colher escondida... e a proibição : “ não é prá você não”.

E eu apenas sabia que se tratava de um menino pobre, aluno de uma escola pública num bairro operário, com evidente medo que a mãe viesse a saber daquela invasão ao copo de doce que seria, completo, da professora.

Naquela minha infância triste pelo constante sofrimento do meu pai, eu aprendi a sentir com intensidade pelo coração alheio. Aprendi a olhar com seriedade as coisas da vida, as situações de injustiça e a abominar de uma maneira cabal toda sorte de aspereza e de sadismo. Sim, o sadismo que pode ser traduzido não apenas na ação da crueldade com prazer, mas numa mera piada ou numa risada diante da dor de algum ser humano. Sempre senti asco pelo tripudiar em coração alheio em qualquer situação e em qualquer tempo.

Naquela época, era comum o desfilar de caminhões abertos com soldados sentados enfileirados ostentando orgulhosamente suas armas, com olhar carrancudo e grosseiro, encarando o populacho. As crianças capazes de nutrir alguns sonhos, desejos e frustrações retornavam da escola, de mãos dadas com o pai ou a mãe exauridos pela labuta de mais um dia sem cor nem esperança.

E hoje, meio século após saber daquela vontade imperiosa do menino, me exaspero ao perceber a falência do país. O mesmo país do menino pobre com vontade de comer um pouco do doce daquele copo está condenando milhares de meninos e meninas a uma situação similar ou muito pior.

Os meninos que, nos últimos anos, aprenderam a comer, hoje têm na escola pública sua mãozinha com um pontinho de caneta pintado como um sinal: “ você já comeu. Não precisa comer mais. Nem peça. Se ainda estiver com fome, dane-se que o problema não é meu”. Meninos e meninas que, também nos últimos anos, aprenderam que, um dia, viveriam bem melhor que os seus pais, iriam para uma faculdade, fariam uma profissão, teriam a oportunidade de sucesso. Seriam o orgulho da família! Quem sabe, um doutor, de roupas brancas, que poderia salvar vidas. Uma arquiteta, uma engenheira a construir prédios e casas lindas, ao contrário da mãe, que serviu muito café a homens de negócios. Teriam dentes e não passariam pela humilhação de uma aparência de perda das tão necessárias estruturas físicas para um bom funcionamento do organismo e teriam sim uma estética marcada pelo belo.

Teriam casa, direito a viagens, descobertas, mais conhecimento...

Teriam...

Hoje existem meninos já grandinhos metidos a uma sabedoria que lhes falta de forma absoluta, que ganham dinheiro dos boçais engravatados para dizer que querem um Brasil Livre... Livre de que mesmo???

E querem brincar de fazer diferente esses que nem desconfiam o que seja um governo autoritário e o significado e o martírio da exclusão é o que mesmo????

Brincam, gargalham, debocham da barbárie social. Dizem que querem uma tal de escola sem partido...quer dizer, querem uma escola de partido único, fascista, da total obediência ao status quo, de idolatria ao mercado, da submissão à eterna casa grande que dispensa adjetivos e explicações.

Querem retirar de Paulo Freire o título de Patrono da Educação Brasileira e, quem sabe, outorgar o título de educador máximo a Alexandre Frota ou Suzana Vieira. Mas pode ser também para o Faustão. Ô loco, meu!

Querem terminar de entregar o país aos estrangeiros como se fosse um brinquedinho e acham que existe alguma sombra de normalidade nisso. E não se preocupam com o desemprego, com a marginalização, preconceitos e desamparo, afinal, ” desempregado é vagabundo mesmo. Eles não querem trabalhar” , relincham isso com maestria, afinal, “ quem quer consegue”.

Aquele menino pobre, do doce de goiaba, pode ter caminhado, mesmo aos trancos e barrancos , conheceu a esperança e compreendeu o seu processo de elaboração. E que era possível sonhar, querer, buscar ainda mais. Nós tivemos a feliz oportunidade de conhecer a abertura de uma estrada com possibilidades de uma reconsideração histórica. Estávamos caminhando, tentando ocupar espaços eternamente negados a uma quase totalidade da população... Estávamos construindo sim. Foi quando milhares resolveram ir para as ruas, obedecendo a palavras de ordem de mentecaptos marcadíssimos pela mais grosseira miséria moral e foram bater panelas, abrir a boca e escancarar dentes com sorriso Colgate, carregar cartazes, distribuir panfletos, usar camisa verde e amarela, ocupar avenidas, acompanhar uma imprensa energúmena para, resumidamente dizer:

Menino pobre do Cambuci, ô, menino pobre... esse doce é só prá mim.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 28/09/2017
Reeditado em 28/09/2017
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