O Dique

Não é mais questão de perspectiva agora, não importa mais o ângulo, é só o fato desse velho dique estar se rompendo; com minha vela apagada vasculho cada centímetro de asfalto frio, piso sem pressa esse jardim que nunca houve enquanto as fendas da muralha me sorriem, insinuam-se com sussurros. Dizem que cuspirão sangue num jorro incontido, dizem que me afogarão no pus dos meus sonhos mortos – eu sorrio de volta. Bem sei que essa represa só aquartela as pedras cortantes que anseiam minhas costas, o beijo último que me engolirá, a mim e ao muro.

O que espera aquele que velava por um campo de cimento? Cada pedra rasgando meu tecido terá encontrado seu destino e entregue sua mensagem – sorrio mesmo e anseio pela dor fumando as horas que tenho, cheirando os minutos que me restam desse silêncio; porque meu corpo em si é um dique me acuando dentro da dor maleável que me abastece e, quando estiver dilacerado, serei livre.

Sorrio, pois sob as pedras serão minhas fendas corrompendo com sangue a monocromia da paisagem que criei. O que restar será mais contundente, intenso e definitivo do que aquilo que me atingiu. É só uma questão de perspectiva.