TRABALHO DE PARTO

TRABALHO DE PARTO

Este ultimo domingo deveria ter sido igual a tantos outros e foi, ate as duas da tarde quando olhou o relogio pela ultima vez.

Quando voltou a abrir os olhos era entre quarto e cinco, uma eternidade tinha se passado e o que viu em volta acontecendo novamente lhe tirou o ar como da primeira vez.

As paredes a sua volta caindo uma a uma, os quadros , os moveis indo ao chão, alguns em direção a ela que tentava se proteger, os livros e memorias de uma vida iam em queda livre pro nada. Era vivo, tão nítido tudo isso em seus olhos, tão real que ouvia o barulho de tudo se tornando escombros.

Da primeira vez que viu/sentiu isso entrou em trabalho de parto logo depois, e horas depois se transformava em mãe.

Talvez Freud e suas teorias sobre os sonhos classificasse esse como a dor do partir, dividir, separar, deixar ir porque não tem chances de continuar guardando e protegendo algo dentro de si, so seu, que mais ninguém tem acesso ou poder pra atingir. O parto físico era isso o desmoronamento de um mundo criado por voce, por algum tempo pra voce.

Se passara mil anos e ela ainda não saberá responder como nesse ultimo domingo trocou de roupa, revirou os armários procurando uma caneca térmica que não gostava e por isso tinha escondido, fez café, e saiu de casa com a chave em uma mão e a caneca na outra. Ela só sabia que se as contrações acontecem dessa vez seria a céu aberto, sem paredes caindo.

Quando abriu a porta que separa o seu mundo e o mundo de todos viu um fim de dia perfeito, o sol ainda morno, a brisa quase fria, mas não ainda e a rua sempre movimentada de um ir e vir, de pessoas a qualquer hora conversando nas calçadas e carros e carros passando a todo instante estava agora congelada no tempo. Alguém deve ter proibido as pessoas e carros e barulho de usar aquela rua nessa hora.

Tudo era o som do silencio ate que do outro lado da rua um rapaz ligava o radio num volume que enchia a rua de musica e mesmo assim era so ela de um lado, ele do outro , não se viam e a musica uma apos outra era o acelerador da dor, dela no seu mundo, dele no mundo dele. Estranho constatar que uma rua sempre em movimento tinha parado no/o tempo, como se tivesse sido colocada numa bolha ficando invisível aos de fora.

Pra quem não sabe uma contração de parto não é como levar uma martelada no dedo, onde a dor já vem no limite máximo, aguda, dilacerante.

A dor da contração vem devagar quase suportável, ate que alguém decide girar o botão lentamente, aumentando o grau de intensidade, ou volume, e quando atinge o máximo voce pensa “me deixa morrer por favor” e é ai que ela retrocede lentamente pra voltar depois.

Ela nao sabe quanto tempo ficou ali de pe ate que se sentou no degrau da escada, escada sempre com alguem,criancas,

que hoje era a “mesa de parto” dela.

A musica tomava os espaços dentro dela. Impiedosamente as musicas de dor ,de amor, despedida faziam seu trabalho nesse parto.

Sabe aquele jeito que ela tem de enfias os dedos na parte de trás dos cabelos levantando eles todo de uma so vez?

Ela faz isso quando lava os cabelos e deixa secar naturalmente, e ainda sente a umidade deles na nuca. Ou quando esta calor demais e sente o pescoço molhado prendendo os fios dos cabelos na pele, precisando sentir o ar, o frescor, ela oferece a nuca nua descaradamente pro vento e ele aceita.

Naquele momento não foi nenhum dos dois motivos que a fizeram fazer isso,ficar tão vulneral, tão menina, mas fez assim mesmo, se entregou a dor,ao limite do insuportável. So então, finalmente sentiu pela primeira vez o beijo que sempre esperou lhe ser oferecido, ou roubado, ali na nuca, no ponto onde a medulla óssea sai do celebro pra comandar o resto do corpo. Um beijo ali pra ela era abrir a porta da sua alma, pra sair ou pra entrar definitivamente. Ate então ninguém tinha conseguido ir tao longe, o beijo que nunca recebeu, mas sentiu ,provava que alguém tinha aberto essa porta. E doía, doía, doía tanto que qualquer gemido morria na garganta antes do socorro chegar.

Ja sem mais limites pra serem quebrados, duas lagrimas separadas por uma fronteira, que nunca se viram, ou se tocaram optam pelo suicidio como forma de Liberdade saindo da prisao da retina. Parelalas caminham devagar uma ao lado da outra sem se verem ate a beira do abismo onde o peito sera o solo sagrado.

Ela ainda paralisada pelo beijo que não teve, pela musica que era bisturi, pelo limite máximo da contração do parto/partir faz sua parte, respire mais profundo do que é humanamente possível e com a ponta dos dedos impede as duas suicidas de serem sepultadas sem as devidas honras de heroínas.

Recolhe as duas, que nunca se viram agora sendo uma so e oferece ao vento

Ele leva em cortejo o fruto desse parto. As folhas das arvores fizeram festa quando ele passou, dava pra ouvir o barulho, os passarinho saiam dos galhos abrindo passagem e ela pode agora descansar porque o tempo dos abortos emocionais tinham acabado. O sentimento que tinha guardado e protegido dentro dela não tinha morrido, teria vida longa em outro lugar. O parto tinha terminado!

A musica virou silencio, o rapaz do outro lado da calçada a vê e com um leve movimento de cabeça antes de descer a rua lhe diz num leve sorriso: Vai ficar tudo bem!

Ela responde com outro movimento e mentalmente diz : Obrigado doutor!

A rua voltou a viver, depois de responder a dois ou três boa noite, de ouvir os carros e sirens se levanta da escada pra dar passagem pra uma criança que queria subir pelo lado que ela estava rsrsr, e ela deixa.

A caneca térmica que agora odiava ficou na lata do lixo com o café já frio como o vento que agora brincava de ser quase inverno.

Todo trabalho de parto é traumático em algum momento ,esse não seria exceção.

Parir a dor do partir como tudo é escolha, essa foi a dela.

Agora esta em coma induzida, mas tem um leve sorriso no rosto.

Uma das musicas ouvida na rua do parto. Que teria sido ficção se não tivesse sido real

https://www.youtube.com/watch?v=uOnobwoOTg4

**** Baseado em fatos reais, qualquer semelhança com pessoas, fatos e locais não é nenhuma coincidência é apenas um jeito diferente de se deixar doer*****

Eni Araujo

07 Out.17