O PARADOXO

O PARADOXO

Todos os dias, papai acordava muito cedo e, após fazer o café, saia em direção ao mercadinho que ficava a menos de duzentos metros de distância de casa.

O trajeto, de apenas duas quadras, era marcado por inúmeros encontros que este saboreava como se fosse o último, sem receio de cumprimentar as pessoas e distribuir sorrisos que alegravam – mesmo que por pouco tempo – o dia daqueles que o recebiam. “Para mim cimento, paralelepípedo, mercado e pronto". Para papai, sol, sombras, árvores, pássaros, crianças correndo. A beleza de seus passos, seus encontros, sua leveza em interagir com as pessoas me inundavam de alegria e ao mesmo tempo me enchiam de tristeza, em um paradoxo, ao imaginar que um dia seria ceifada daqueles momentos. Ele conversa com seu Geraldo o leiteiro distribuindo o leite nas casas da rua, encontra Mariano o padeiro, com sua carroça entregando o pão. Feliz da vida ele comemora mais um dia de vida com saúde, bendizia os seus olhos, seus passos, os amigos e o coração grandioso que era só amor. Amor pela família, pela natureza pelas pessoas que saudava a cada encontro.

Bom dia! dizia para Seu Zorinho, gari da rua, que contava histórias do dia a dia que tomava minutos preciosos da caminhada do papai.

Jango, o cavaleiro, aparece no fim da rua, informa meu pai que passou na entrevista do INSS que o declarou interditado, como se tivesse sido aprovado em um vestibular de medicina e no final ainda acrescenta: - O Germano não vai passar. Se referindo ao irmão e a mesma entrevista que este faria. Nos olhos de papai podia se ver as expressões, de alegria, satisfação, incredulidade.

O sorriso agora era de satisfação. Papai encontra Madalena, a doceira da rua, que lhe oferece um doce minúsculo ( olho de sogra), o doce preferido do papai que após degustar o seu, requisita um para a “patroa” que era como se referia a Dona Ermelinda sua esposa.

Alguns metros o separam do seu destino. Pessoas se aglomeram na rua, próximo ao velório da cidade. Entra para pesquisar sobre a família do cidadão que fez o “passamento”. Ao lado do caixão encontra apenas um cidadão em pé em profundos soluços, ao qual pergunta “ de quem se trata o defunto?”, o fulano aponta, com o seu dedo indicador, para o senhor deitado no centro da caixa fúnebre afirmando “é o próprio”. Papai desiste da informação e comenta com o dono da funerária sobre a movimentação dos últimos dias. “Se continuar assim vai ganhar muito dinheiro e acrescenta com sua sabedoria. “é pena que não possa fazer clientela”.

E assim caminha papai transformando cada árvore, semáforo, edifício em uma história, só dele, com enredo e personagens que a noite, enquanto se esquentava no grande fogão de lenha, rodeado dos filhos, passa a ao desfecho encenando os movimentos que o ajudam a expressar a ideia que ficaram de cada um que passou por ele ao longo do dia.

O paradoxo se concretizou. Hoje na caminhada somente saudade, faço sozinha o que papai fazia. Em cada esquina uma lembrança. Caminho como ele, construindo historias ao longo do caminho procurando levar pela vida afora o que tem de mais belo. Tirando das experiências vividas apenas a sua essência e quem sabe nestas andanças poder proporcionar aos meus filhos e netos algo de bom, pois, desta vida não levamos nada apenas a vida que levamos, já dizia meu velho pai.

Mariana Quintanilha
Enviado por Mariana Quintanilha em 09/10/2017
Reeditado em 12/01/2018
Código do texto: T6137388
Classificação de conteúdo: seguro