Simplesmente Elis

No dia 19 de Janeiro de 1982, o palhaço no picadeiro iluminado pelas luzes da ribalta parou com seus malabarismos, baixou a cabeça e entristeceu, o bêbado se abraçou á equilibrista e juntos choraram. O Trem Azul partiu eternamente levando consigo Elis Regina, ou simplesmente Elis ou a nossa pequena, ardente e deliciosa pimentinha. Que me perdoem as grandes musas da música erudita ou qualquer que seja a vertente, mas eram apenas estrelas guias a quem ela pediu um brilho de aluguel. Elis transgrediu irresponsavelmente com um propósito indecifrável todas as regras da divindade musical e poéticas já estabelecidas. Sua voz murmurava profanidades sagradas, pecados mortais perdoados, amores não eternos posto que são chama, mas que sejam infinitos enquanto durem, desilusões amargas como mel e que em cada passo dessa linha chamada vida, podemos nos machucar.

Elis nos alertou que havia um pau e uma pedra no fim do caminho, que amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves, que o homem que diz vou não vai porque vai mesmo não diz, que em canto de Ossanha não vá que muito vai se arrepender, que perguntasse aos seus Orixás, amor só é bom se doer, que mesmo ao som do Bolero são dois pra lá dois pra cá e o que foi feito amigo de tudo que a gente sonhou o que foi feito da vida e o que foi feito do amor, quisera encontrar aquele verso menino que escrevi há tantos anos atrás.

Elis viveu para a música ou a música que viveu e existiu somente para ela. Esta pergunta não será respondida, pois precocemente aos 36 anos de idade não teve a misecórdia de nos responder. Fato é que preferimos acreditar que a resposta está no legado da sensibilidade, do brilho intenso de um sol fulgurante, da fúria mansa e por vezes avassaladora de sua existência.

Elis viveu e morreu de amor, de inquietude e parcimônia, de ilusões e desilusões incompreensíveis a nós meros expectadores na platéia do palco onde ela nos encantava com seu poder hipnótico vindos de olhos profundos, singelos e molhados com as lágrimas de quem sentia o que ninguém entendia e jamais entenderá.

Não há mais nada a ser dito sobre Elis sem despertar em nós a saudade de uma dor mais profunda que o Mar depois de ouvi-la interpretar absurda e magnificamente a música Atrás da porta de Chico Buarque de Holanda.

Quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus juro que não acreditei.

Eu te estranhei, me debrucei sobre teu corpo e duvidei e me arrastei e te arranhei

E me agarrei nos teus cabelos nos teus pelos, teu pijama nos teus pés ao pé da cama.

Sem carinho, sem coberta no tapete atrás da porta.

Reclamei baixinho.

Dei pra maldizer o nosso lar pra sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço

Te adorando pelo avesso

Pra mostrar que inda sou tua

Só pra provar que inda sou tua.

Elis puxou um arrastão no mar sem fim, trouxe de volta o irmão do Henfil, fez chorar Marias e Clarices, dançou na vida ao som de boleros, nos ensinou que muito vale o já feito, mas vale o que será, que a esperança dança na corda bamba de sobrinha e que o show tem que continuar.

Talvez Deus em seus misteriosos desígnios a tenha chamado para brilhar no céu, não por aluguel, porém a colocou no lugar onde sempre esteve e eternamente onde sempre estará.

Fim

Malagar
Enviado por Malagar em 10/10/2017
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