Carne e Castigo

Viagem a Anápolis, de ônibus. Cochilo no caminho. Surpresa nenhuma: cães de Brasília, cães goianos. Na rodoviária de Alexânia, desço pra comer um pastel. Cães goianos, fugindo da canícula, espantam moscas e se coçam impacientes, querem tirar um cochilo. Sem coleira e sem dono. Analogia inevitável: política e pobreza. Em Brasília, não há cães vadios, pelo menos no Plano Piloto.

Mas entra em cena um terceiro cão: o cão pitanguiense. Por ele você não esperava. Você é tão fominha por futebol que joga até no gol? Conheci um cara assim.

Açougue do Iraci, fone 645. A carne era encomendada por telefone. Periferia e centro. Meninos do centro são provocados pelos bêbados e desocupados, sentados nos passeios. A vadiagem está no Código Penal, mas não dava nada. Agora, então, depois da Constituição de 88...

-Ô cabeludo!

Dez horas da manhã. Mamãe se lembra que falta carne pro almoço.

- Vai buscar carne. Anota na caderneta. Não esquece de levar a nossa.

No balcão do açougue, um relógio de corda, claro. Estamos em 60 e poucos. O eterno jogador do São Paulo faz embaixadinha no centro do despertador, cada uma é um tic-tac. Aposto que era o Gino, centro avante artilheiro. O vidro do mostrador conserva algumas marcas de sangue. Ninguém se machucou, era só respingo de carne de boi. Ou de vaca, quem sabe.

- Um quilo de carne, pede o menino.

- Dá a caderneta pra anotar.

Desce o morro de volta, com o embrulho de carne, papel cinza grosso. Desce pela rua da Cruz. No meio da praça, em frente da capelinha de São José, uma pelada. Estamos falando de futebol, embora, anos depois, houvesse uma mulher que corria nua pelo bairro.

- Ô cabeludo, cê pega no gol?

Sem responder, vai correndo e assume as balizas, uma pedra aqui, outra acolá. Sente-se Gilmar no gol da seleção. Gostava do Poy, do São Paulo, mas era argentino, não podia jogar pelo Brasil. O embrulho de carne, na lateral, descansa no solo. O jogo corre solto, bola de borracha já começando a rasgar, a turma descalça, um já lanhou o dedão, outro joga de chinela emendada com clips. O sol racha, mas todo mundo já está moreno, muitos anos de profissão. Os coqueiros do Largo da Rua da Cruz não dão guarida.

O relógio da Matriz bate onze horas. O menino se lembra do almoço, da carne, da escola ao meio-dia, o coração dá uma acelerada, é hora de ir pra casa.

- Vou sair. De tarde, volto.

Ato contínuo, ainda com os olhos no jogo, abaixa-se pra pegar o embrulho de carne. Deus do Céu, ele já não está no lugar onde o pôs! Desesperado, avista um cão pitanguiense, todo cheio de si, já a uns cinquenta metros do campinho, arrastando o seu embrulho, sua preciosidade, seu ingresso em casa, o ponto alto do almoço dos pais e dos irmãos.

Corre atrás do animal, ao chegar perto só vê os dentes ameaçadores, uma espécie de "sorriso" nada amistoso. A sua volta, além dele, estão outros cães pitanguienses, interessados na mesma prenda. Aí, entende que já é tarde, ninguém iria arrancar daquele focinho e daqueles incisivos o quilo de carne já sujo de poeira. Muito menos ele. E já se prepara para as chineladas de praxe naquele tempo.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 17/10/2017
Reeditado em 10/08/2022
Código do texto: T6145116
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