DEVANEIO

A tarde estava fria. Cheguei junto à lareira. O calor gostoso do braseiro tomou conta do meu ser.

Lá fora o minuano lamentava. Fiquei a escutar o vento, assobiando, chorando num redemoinho sem fim.

Aconcheguei-me ao encosto macio da poltrona; cerrei os olhos. Imagens flutuavam a minha volta.

Nesta quietude passageira o espírito povoava-se de lembranças agradáveis, lembranças longínquas da mocidade, sonhos acariciados num dia de verão.

Adormeci... e um passado distante aproximou-se de mim. De repente, achei-me na adolescência. Havia sonhos e ilusões em meu jovem coração.

Era um dia de verão! Quente. As arvores copadas, distanciadas umas das outras... Um calor excessivo.

Ao regressar para casa, saia azul marinho, blusa e meias brancas, livros sob os braços, caminhar cansado... A mente a cismar sobre o trabalho que deveria desenvolver para o dia seguinte. De repente, toma-se de um entusiasmo como jamais sentira e vislumbra um universo maior. Sente-se tonta, o coração bate com violência, dificultando a respiração e o andar. Arroja-se rua afora e recolhe-se no carinhoso olhar que a espera.

Havia um estranho brilho no ar.

De mãos dadas percorrem as ruas, conversando, trocando olhares. Já não havia mais cansaço nem calor, nem necessidade de sombras.

De súbito, tudo escureceu. Acordei-me. Fiquei pensando em meu sonho. Não. Não foi sonho. Era a voz do passado confundindo o presente.

Continuei ali, recostada, relembrando a trajetória da vida, da adolescência que busca a verdade, que sonha e se projeta para o futuro.

Enrugando a fronte, contemplo demoradamente a juventude desaparecida. Uma multidão de pormenores pueris e íntimos rumorejava-me o espírito; cabras no pátio da casa, os animais de serviço, o fio de água borbulhando entre as pedras do rio, o banho frio na água corrente, o escorregar nas pedras limosas, o primeiro namorado, o primeiro beijo, seu vulto alto, seus olhos, sempre seu olhar tão cheio de amor.

Senti a lágrima rolar pela face. Chorava.

Mordi os lábios, sequei os olhos.

As recordações desfilavam como se fossem soldados em continência a Bandeira, umas tristes, outras alegres, algumas confusas, outras distantes e tão bem articuladas como se tudo acabasse de acontecer, naquele mesmo instante.

Mas o presente voltou a ser realidade. Extinguira-se a mocidade como a chama de uma vela soprada pela corrente de ar.

É a mente, ainda tão carregada de amor, que, mesmo em sonho, reporta-me ao passado distante.

Trava-se a luta entre o sonho e o real e em meio a esta revolução de idéias ainda vejo a profundidade de um olhar que me dizia amar e o vulto heróico do jovem que jamais lutou por mim .

ANACLARA RIBEIRO
Enviado por ANACLARA RIBEIRO em 19/08/2007
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