Olhos de vitrine

Às vezes, saio de mim mesma e caminho em pensamento por ruas que só eu vejo. Meus passos silenciosos não deixam pegadas e vão audaciosos pelas paralelas da vida, em trajetos de acordo com os meus sonhos e pesadelos. Às vezes em busca de paz, outras em fuga do medo e decepções, essas pragas que sempre nos perseguem. Passo calmamente diante de casinhas silenciosas, que guardam segredos entre as paredes, aninhando outras vidas como eu, fechadas e escondidas dentro do seu viver. Vez ou outra uma igrejinha na praça, dessas antigas onde os sinos ainda tocam para anunciar um novo dia, ou para agradecer aos anjos pela graça do entardecer. Sempre tem um céu azul que chega ao ocaso se tingindo de um tom alaranjado, esse tom de outono que traz nostalgia quando chega. E as ruas vestidas de pedra vão acariciando os meus pés quando passo. Caminho devagar olhando os detalhes dos jardins, o desenho das janelas, as portas entreabertas, como se me convidassem a entrar num mundo que não é meu. Passo ligeiro, com medo de que alguém de repente me veja vagando nos meus sonhos, sempre protegida do invisível de mim mesma. E de repente, paro. Vejo as luzes da vitrine. Lá dentro os manequins se exibem, com suas roupas extravagantes e cheias de cores, de brilhos e estribilhos que repetem detalhes no seu compor. Parecem vivos, me desafiando a me vestir igual, a me mudar por fora, sair de dentro dessa mortalha bege que visto igual todos os dias quando saio para espiar a vida. Tiro os olhos da vitrine e olho para dentro de mim mesma. Tento me desnudar e me cobrir com os trajes que as mãos de plástico, imóveis me oferecem. Mas eu não me caibo no figurino. Não me enxergo nesse mundo extravagante de cores, nessa revoada de rendas e brilhos que tecem para atrair os olhos de quem quer se esconder de si mesmo, ou se revelar ao mundo com a graça da beleza e do luxo. Sinto-me ridícula só de me imaginar num eu que não seria eu mesma, fantasiada de outra, camuflada em fantasias. Olho em volta, e então percebo algo que ainda não vi. Os olhos de vidro sarcásticos, zombando da minha pequenez diante da vitrine. Mas não me constrangi. Não quero caber na mesmice de todos que copiam o que a moda dita e se escondem dentro de padrões manipuladores de costumes. Não quero nada que separe minha alma da minha pele, que me afaste de mim e me dê outra fisionomia que não seja a minha. Rebelde até nos sonhos, vou me afastando devagar, diante do olhar recriminador dos corpos de plástico das vitrines. Até que o som imaginário de zombaria me obriga a caminhar mais e mais rápido, até que uma corrida louca me leva de volta para a realidade. Estou de volta ao mundo onde a vitrine somos todos nós, caminhando apressados com a roupagem de acordo com o gosto que cada um tem. E ao despertar, olho-me devagarinho diante do espelho. Minha mortalha bege se foi com os meus sonhos e me lembro de que já é tempo de me trajar de acordo com o meu ritmo de vida. Abro o armário e busco um vestido estampado, bem colorido. E ao contrário do que senti diante da imaginária vitrine, eu coube perfeitamente na nuance das cores que finalmente vieram dar vida à minha vida.

maria do rosario bessas
Enviado por maria do rosario bessas em 15/11/2017
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