O capote

Olhei aquele homem que atravessava a cidade. Apesar de o ter visto por pouco tempo, consegui observá-lo razoavelmente. Homem novo, alto, cara chupada e maçãs do rosto muito salientes. Cabelo comprido acastanhado, liso, penteado e com a pele escura danificada pelo sol de muitas caminhadas. Parecia seguir sozinho, absolutamente só, sem fazer parte de nós e daquele contexto. Tremendamente seguro, dentro de um capote escuro corroído pelo tempo e pelo pó. Camisa branca de colarinho fechado sem gravata, que envolvia o pescoço muito magro e enrugado. Pretendia certamente assegurar um ar social e formal, mas o traje era demasiado velho, apesar de extremamente engomado. Era um ser totalmente pairante e abstrato. Uma silhueta negra e determinada que seguia pela rua em passo cadenciado. Fazia lembrar um daqueles pistoleiros dos "western" que aparecia na linha do horizonte perto dos povoados, a arrastar as botas e pronto para honrar o seu nome em mais um duelo. Apesar dos seus estranhos trejeitos e do seu ar semi marginalizado, achei que transmitia alguma dignidade. Muito compenetrado e ciente do seu papel. Ou talvez não. De repente, percebi que já o avistara outras vezes, mas não como daquela vez. Parecia deslizar por entre as pessoas, como um figurante que acabara de desempenhar o seu papel numa longa filmagem. Estranhei o fato de ninguém olhar para ele. Todos pareciam já conhecê-lo ou, talvez, nem achassem pretexto para notá-lo. Só lhe faltava o "colt", segurando duas belas pistolas prateadas e reluzentes. As botas daquele pistoleiro eram uns velhos sapatos cambados, exageradamente engraxados e brilhantes. Olhei atentamente para uma das suas mãos, que se deixava parcialmente cobrir pelo punho muito branco da camisa. Havia nele um quê de fidalgo, pobre e rejeitado. De repente, senti vontade de saber um pouco mais sobre aquele homem que, apesar de uma aparência frágil e alienada, caminhava por entre o povo de cabeça levantada. Notei que, entre os dedos da sua mão direita, apertava algo intensamente. Era alguma coisa que parecia pertencer-lhe há muito, muito tempo. Procurei reconhecer aquele objeto, semi retorcido e gasto. Parecia um papel amassado. Naquele instante, o sino da velha igreja tocou duas vezes. Instintivamente, aquele homem transferiu o seu objeto para a outra mão, num gesto rápido e preciso, como se quisesse conferir que não esquecera o seu livro sagrado. Ao longe, aquele capote, gasto e surrado, parecia agora mais a batina de um monge a caminho do seu santuário. De cabeça baixa, implorando pelo seu destino.

Mongiardim Saraiva
Enviado por Mongiardim Saraiva em 22/11/2017
Reeditado em 05/07/2020
Código do texto: T6179574
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