Indigno Brasil

Dois mil e dezessete foi um ano indigno, pra dizer o mínimo. Período imediato do pós-golpe sobre a presidenta Dilma Roussef, o Brasil se ajoelhou e curvou-se ao caos. O golpe abriu as portas do improvável, daquilo que julgávamos impossível. Foi um ano em que não houveram panelaços e camisetas amarelas nas ruas, bonecos infláveis de Temer com vestimenta de presidiário ou adesivos do seu ventre penetrado por bombas de combustível, como fizeram contra a presidenta Dilma aqueles que se diziam apartidários e defensores da moral. Para eles, pareceu um ano produtivo. O grito “Fora Temer” soou baixinho, tímido, inútil, entoado somente por aqueles que defendem verdadeiramente a dignidade do país e pelos que se identificam com a esquerda brasileira. Baixo porque não ecoou e não freou o desgoverno irresponsável que se impôs arbitrariamente sobre nós; baixo porque o coro produzido pela esquerda não ecoou, como o da direita, no aparelhamento midiático, que nos idiotiza e nos ideologiza de acordo os interesses da Casa Grande. Colonizados que somos, o capital estrangeiro entrou e nos levarão tudo.

Foi um ano em que a população brasileira não avançou enquanto sociedade, diferentemente dos anos anteriores, em que a desigualdade reduzia e a economia avançava. Inadmissível para um país com tamanhas carências, disparidades e necessidades sociais. Pelo contrário, o país retrocedeu e a guerra aos mais pobres se atenuou: houve uma reforma trabalhista indigna; aumento nas taxas de desemprego; congelamento de investimentos públicos em educação, saúde e segurança; autorização de trabalho escravo; fim de políticas sociais, como Bolsa Família, Farmácia Popular, Ciência sem Fronteiras e Minha casa minha vida; abertura do pré-sal ao mercado estrangeiro; reforma no ensino médio, que retirou da grade curricular disciplinas como filosofia e sociologia e proibiu discussões de gênero, racismo e movimentos sociais; caça aos povos indígenas e quilombolas; privatizações e desmontes dos bancos públicos; terceirizações irrestritas; corrupções envolvendo o governo, inclusive o presidente Temer e seus aliados do alto escalão; utilização de bilhões em verbas públicas para salvar-se de cassações de mandatos; e reforma da previdência, dentre outros milhões de retrocessos que aconteceram nos mais diferentes espaços do país. A partir de então, pobre (leia-se aqui também a classe média) não estuda, não viaja, não entra na universidade, não tem habitação, saúde e segurança. A partir de agora, a saída do pobre é mesmo morrer.

De posse do discurso da vez, que valoriza a crise econômica e a corrupção como os maiores problemas do país, a direita brasileira avançou como detentora da moral e da integridade e se apossou do país sob os slogans “Ordem e progresso” e “Brasil nos trilhos”. Os mais alienados creram e pagaram um preço alto, como, por exemplo, a gasolina, que bateu recordes de quase cinco reais o litro; ou o botijão de gás, que subiu 70% no ano; ou valores absurdamente altos do ramo alimentício. Pra piorar, até o salário mínimo reduziu. O slogan falhou: não houve ordem, não houve progresso e o país descarrilhou dos trilhos de vez, visto o crescimento econômico irrisório de 1% no primeiro trimestre de 2017 e a corrupção descaradamente cometida pelo alto escalão, com imagens de dinheiro vivo transportado em mala, ligações telefônicas do presidente negociando propina e o candidato à presidência derrotado negociando homicídios.

O golpe deflagrou discursos anteriormente contidos na sociedade brasileira. Foi o ano da intolerância e do ódio. As redes sociais facilitaram um palavratório machista, misógino, homofóbico e racista. A polícia e o homem de bem foram autorizados a matar. A arte, a ciência e os direitos humanos foram cruelmente atacados e questionados. Houve uma inversão tão grande que Hitler foi chamado de comunista, Paulo Freire de ideólogo e Bolsonaro e Alexandre Frota de salvadores da pátria. Enquanto crianças morriam de fome no nordeste brasileiro, a elite se preocupava com obras de arte expostas em museus.

Há, claramente, um interesse pelo caos. O projeto neoliberal, que objetiva irrestritamente o lucro financeiro e desdenha do bem-estar social, cria e se alimenta do caos para a destruição do Estado, que é o ente que garante práticas de proteção social. O interesse pela substituição do Estado pelo Mercado traz “vantagens e privilégios” apenas para quem possui condições de arcar com valores astronômicos de serviços que, pela Constituição brasileira, é de dever do Estado, como saúde, educação e segurança. Deixa submerso e desprovido milhões de brasileiros que vivem em condições extremas de pobreza e subsistência. Milhões de pessoas sem trabalho. É evidente que o modelo econômico liberal, que não pretende reduzir as desigualdades historicamente alicerçadas no país, base da maior parte dos nossos problemas atuais, resultará em aprofundamento da crise econômica, política, ética e social, com concentrações de riquezas cada vez maiores.

Tudo isso não é novo, embora o momento atual brasileiro afunda sem precedentes. O país, desde sua descoberta, é um território empobrecido, desigual, corrupto e injusto. Maltrata os que mais necessitam. Portanto, a culpa não é do Partido dos Trabalhadores, como discursa a direita brasileira, já que, na história do país, o PT governou apenas treze anos, e a direita deteve o poder pelo restante da história. Entretanto, o PT tem parcela substancial de responsabilidade pela crise, principalmente por não ter levado à cabo uma reforma política e social profunda e equânime que realmente mexesse nas estruturas sociais e retirasse privilégios dos mais abonados e garantisse direitos mínimos àqueles que mais necessitam.

E como esse colapso se sucedeu? Como diria o ministro Jucá, foi um grande pacto da elite brasileira pelo poder e pelo lucro econômico. “Um pacto com o judiciário, com tudo”. Os órgãos reguladores, incluindo STF, Ministério Público e Tribunais de Contas assistem complacentes à barbárie. Aplaudem e apoiam, enquanto a população sucumbe.

Ano que se aproxima se reveste do incógnito. Pessimista que sou, creio na piora. Eleições presidenciais se achegam com candidatos sem projetos políticos, com discursos ridículos e com uma ignorância encalacrada. A esquerda encontra-se fragmentada, e cada partido concorrerá à presidência com o seu candidato, fragmentando o montante de votos e reduzindo as chances eleitoreiras. O PT e o Lula seguem perseguidos, e Bolsonaro cresce dentre os desavisados. Dois mil e dezoito promete. Salve-se quem puder!