O guarda-chuva do Saraiva

Depois de uns 15 anos, vou encontrar José Alexandre Saraiva em Curitiba. Tivemos um curto convívio em 2001 em Foz do Iguaçu, porém bastante frutífero, no mínimo por um samba-choro que fizemos, o “Tributo a Mário du Trevor”, músico muito conhecido tanto em Foz quanto em Curitiba. Só o folclórico Mário, falecido aí pela metade de 2017, já merece uma crônica, que fica para outra oportunidade. A música citada faz parte de um cd gravado na Terra das Cataratas, denominado “Canción del Água Cadente”, com cerca de uma dezena de composições do Saraiva.

Pois bem, sigamos com o andor. O cavalheiro pernambucano vai receber-me na rodoviária de Curitiba, depois de 10 horas de ônibus de Foz do Iguaçu à capital paranaense. A chegada é debaixo de chuva. Dali até o hotel, ele me dá carona num Monza (sim, Monza, conservadinho, aliás, carro preferido de meu pai) e, depois, outra carona, já essa de guarda-chuva. Tomamos café no hotel, situado em plena Boca Maldita e, enquanto tomo banho e troco de roupa, ele me espera na rua. A ideia era sair dali para almoçar com seus conhecidos no Stuart. São intelectuais, músicos, poetas, compositores, escritores e jornalistas de seu grupo de amigos que estão à espera. Uma festa que antecede a outra, já marcada para o Ligeirinho naquela mesma noite, outro reduto de boêmios, intelectuais e artistas da mítica capital de Leminski e Dalton Trevisan.

Quando desço do apartamento, parcialmente recuperado da viagem, já está ele me esperando com um presente na mão: um guarda-chuva. Explico, muito mal agradecido, que não uso mais guarda-chuva, que é incômodo, porque quando usava sempre perdia, que não via tanta utilidade, que poderia muito bem passar sem ele, mas ele não diz nada. Esse silêncio me fez olhar o céu. A resposta estava no firmamento coberto de nuvens. Conformei-me. Talvez ele tivesse razão.

Daí a pouco começa uma nova preocupação, talvez para compensar a descortesia inicial: não perder, de maneira nenhuma, o guarda-chuva do Saraiva, pelo menos enquanto estiver sob sua custódia. Aliás, o que ganhei de presente era igualzinho ao dele, desses que não se apequenam, bem estilo antigo, amplo o suficiente para dar carona a amigos mal educados.

Na sexta, sábado e domingo, 31 de dezembro, fizemos o circuito básico da Boca Maldita – Maneko’s, Ligeirinho e o Stuart. Desse último o proprietário é Nelson Ferri, incomparável e criativo anfitrião. Nesse circuito, em tão pouco tempo, conheci a escritora Liamir Hauer, ex-primeira-dama de Curitiba, e o intelectual Edgard Lippmann, ex-juiz federal em Foz do Iguaçu; os músicos Gegê Felix e Gerson Bentinez, violonistas e compositores; a esposa de Gerson, a jornalista Tereza, sempre antenada com o mundo artístico, ótima prosa; Chiquinho do Nordeste, que toca o triângulo e, ao mesmo tempo, canta músicas nordestinas; Cesar Matoso, virtuose no saxofone e o jovem violonista Vinícius Chamorro, que fizeram um duo improvisado para tocar jazz; o cantor paraguaio Arsênio Zarate e a esposa, a psiquiatra Luciana, ele dotado de potente voz que já encantou o Scala de Milão e se fixou em Curitiba, e o poeta e jornalista Raul Urban, acompanhado de sua esposa Beth, também jornalista. Além desses, conheci uma pá de gente interessante, cujos nomes não deu pra guardar, infelizmente. Verdadeira overdose de arte, ideias, planos, sonhos, alguns já materializados em livros, cds, vídeos e sites na internet. Dessas evidências de suas conquistas, cada um deixou comigo um “regalo”, como se diz em espanhol, fruto de sua arte, que muito apreciei e de que vou fazer bom uso.

Mas voltando ao guarda-chuva, expliquei ao Saraiva que sempre perdi guarda-chuvas, mas que esse, apesar de me estorvar, seria alvo de extremo cuidado. E tive. No ônibus veio ao meu lado, apalpado a cada instante. É grande, estilo Chaplin, não encolhe nem perde o vinco, porém consegui trazê-lo incólume até Ciudad del Este. Sei que vou perdê-lo um dia, mas, enquanto puder, vou conservá-lo. Foi uma prova material e pontual do cuidado que esse escritor, músico, funcionário público aposentado e advogado em exercício, demonstra a seus amigos: dá carona a todos no enorme guarda-chuva de sua amizade, generosidade, alegria, bom humor, inteligência e otimismo.

(Curitiba, 29 a 31 de dezembro de 2017)

Nota: o videoclipe pode ser acessado no link:

https://www.youtube.com/watch?v=bkq1icHMcf8

William Santiago
Enviado por William Santiago em 04/01/2018
Reeditado em 05/01/2018
Código do texto: T6216298
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