Dona Zinha

Peguei Dona Zinha no segundo ano. E não caiu, nem subiu, o pano. Subi, eu, aliás, para o segundo andar daquele velho e austero sobrado de Maria Tangará, duros ambos, feito a aroeira. Mas não subi sozinho, nem à frente. As meninas, sempre iam na dianteira. E nós, na rabeira.

Já alfabetizado, sentia-me meio que realizado. Quando o Edinho, vizinho de casa e carteira, e companheiro de tantas idas me leu, privativamente, um artigo sobre Rui Barbosa, corrigi-o com autoridade, mas sem severidade:

— Não, Edinho, essa palavra aí num pode ser 'àgüia' de jeito nenhum.

E lhe dei o exemplo:

— Olha lá em casa mexe-se muito com agulha, tanto meu pai quanto minha mãe entende de costura, e se pronunciam 'agulha', logo livro não ia trazer um erro grosseiro desse. Ah, quer saber, disse eu emendando meu saber: é águia. É. Veja o artigo: O Aguia brasileira.

Estava sem acento, mas aquele lapso ortográfico em nada me diminuía a sapiência de aluno veterano - e amigo. Ou era mais companheiro?

E acabei deixando Dona Zinha de lado. Só pra dar meu recado. Mas não há de fazer mal. Um cantinho muitas vezes já basta.

Antes fosse. Não é que vendo um dia a incansável Dona Zinha grafar no quadro negro - que ninguém naquela época criticava - a palavra 'assucar' , reagi sem pestanejar, e ali na frente de toda a classe:

— Mas Dona Zinha, assucar não é com c cedilha? E fui emendando, sem me emendar, lembrando e ter visto papai pintar numa das latas de mantimento a palavra 'açúcar', e ter botado ali até o acento. Se o velho que era bamba numa aritmética e até em cálculo de juros, e já tinha ganho um dicionário num programa de rádio, além de confrade vicentino que sempre dava seu recado - e era ouvido - nas reuniões da Conferência, iria ele escorregar justamente no açúcar, pensei eu com meus botões, e falei com a confiança de um Prof. Cipro nato, e Neto.

Diante de minha estridência, Dona Zinha, contestou em igual medida, mas apagou o seu assucar e trocou pelo meu.

Mas não deixou de dizer que também se podia escrever daquela forma, que era a grafia antiga.

Nunca mais tive cara pra ir no Bar Para-todos, que era de seu marido e próximo de minha casa e comprar daquelas balas que só eles sabiam fazer. Com afeto e com muito assucar.

Sem contar a menina loirinha deles, que podia bem ter ouvido falar de minha petulância para com sua maman...e me olhar com cara azeda.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 12/01/2018
Reeditado em 12/01/2018
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