A GRANDE CONCEITRAÇÃO (*)

Naquela noite, a multidão superlotava o principal logradouro público da cidade, local da concentração de trabalhadores sindicalizados. As luzes da praça iluminavam o recinto, enfeitado de bandeirolas e faixas comemorativas aos dez anos de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Autônomos e Avulsos – SINTRAV.

A entidade congregava variadas categorias de profissionais, cujos titulares exerciam suas atividades por contra própria: engenheiros, advogados, corretores, vendedores, pedreiros, pintores de paredes, serralheiros, massagistas, manicuras, barbeiros, mecânicos...

As prostitutas e os travestis ainda não estavam legalmente classificados como categoria profissional. Aguardavam o Congresso Nacional aprovar lei de autoria de certa deputada, pertencente à classe.

Por não fazerem parte de nenhum sindicato, os gays apoiavam o SINTRAV, principalmente nos encontros promovidas pela entidade, que se dizia satisfeita com suas presenças alegres e descontraídas.

A campanha sindical levou aos palanques discursos recheados de acusações de má administração, desvio de recursos financeiros, corporativismo, e ineficiência no trato dos interesses dos associados.

Vinte pessoas dividiam o espaço no pequeno tablado. Bandeirolas vermelhas coloriam o festivo ambiente, tremulando, impulsionadas pela tímida brisa que soprava.

Os oradores ansiavam por discursar. O primeiro deles, impaciente, tentava iniciar o discurso. Muito barulho: gritos, assobios, espocar de fogos... A algazarra ensurdecia. O orador insistia em ser ouvido. Com dores nas cordas vocais, irritadas pelas vibrações fortes, decorrentes da elevação da voz ecoada na praça lotada, repetia a saudação aos gritos:

– Companheiras e companheiros!

Nada. Ninguém ouvia.

– Companheiros e companheiras!

Silêncio, companheiros! Pediu Pedro Pedreira, secretário de um dos sindicatos e que, às vezes, servia de guarda-costas a diretores do SINTRAV, em número que excedia ao razoável.

Ao contrário de Pedreira, Marquinho, um dos oradores da noite, líder do movimento gay, tinha fala mansa e jeitos delicados.

A massa operária não dava ouvidos. Marquinho arrebatou o microfone de Pedreira e falou à multidão. O expansivo rapaz segurava o pequeno instrumento com a mão esquerda. Com gestos característicos de pessoas “alegres”, alisava o microfone com a outra mão, em movimentos de cima para baixo, como se estivesse acariciando-o. Entusiasmado, disse à plateia delirante:

– Companheiras e companheiros da ALEBRE! Peço a atenção do pessoal do movimento gay, para ouvir o orador desta noite. Silêncio, por favor, gente! – pediu, colocando as costas das mãos na cintura, depois de devolver o microfone ao companheiro ao lado.

A ALEBRE era uma associação da qual participavam homossexuais, inclusive simpatizantes do movimento. Um número crescente, de grande influência no meio político e, nos dias de hoje, simpatizado por boa parte dos heterossexuais, que lhes acenam com carinho e admiração.

Escolheram como mascote da ALEBRE, uma lebre, mamífero lagomorfo do gênero Lepus, da família dos leporídeos. A escolha do nome da graciosa organização deveu-se ao fato de ser a lebre um animal ágil, distinto do coelho por ser maior e pelas pontas pretas das orelhas. Esses animais não geram filhotes em tocas e já nascem com pelagem e olhos abertos. Trata-se de um bichinho bonito, que a todos causa simpatia.

Segundo o líder do movimento, há certa semelhança entre os gays e a lebre: ambos são alegres, ágeis, espertos e não vivem entocados; mostram-se livremente, são graciosos e inteligentes.

Marquinho lamentava que alguns gays ainda permanecessem no “armário”, entocados, sem se mostrarem abertamente, como o faz a mascote da organização à qual pertencem. “Com o passar do tempo, revelarão suas opções”, comentava, na esperança de, em breve, ver a classe com novos membros e tornar-se mais numerosa, já que é bem aceita no mundo atual.

A letra “A”, antecedida ao nome lebre, destinava-se a tornar a expressão menos comum. “Fazemos questão de seu diferentes”, falava o líder gay sobre a maneira de ser da entidade. Toda a irmandade procurava se diferenciar para obter a simpatia da sociedade.

O concentração de sindicalistas continuou por várias horas. A grande multidão presente ao evento em dia de forte calor e sem estímulo de sorteios para atraí-los, estimulava os organizadores que já pensavam em novas concentrações. Mostrariam a força da massa, intimidariam os adversários políticos, aproximariam os divergentes... Lucrariam, como sempre.

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(*) Extraído de O Único, pequeno romance de minha autoria.