TRINTA ANOS DE CONSUNEL

Era 13 de fevereiro de 1988, sábado de Carnaval, dia do meu aniversário de doze anos, quando o caminhão com a mudança chegou trazendo nossa mobília gasta e algumas caixas com roupas e diversas tralhas que pobre sempre tem e que, de fato, necessita. Imagina uma família de onze pessoas, quanta coisa a transportar, além das catrevagens de meu pai.

Entre as primeiras pessoas da vizinhança que me vêm à memória estão Sueli, a irmã do Lobão e filha da Dona Irene, e Meire, sempre muito simpática e comunicativa. Depois a aproximação foi com as famílias da Dona Jacira e da Dona Mazé e, em seguida, as tantas outras.

Minha melhor amiga era Teresa, filha da Dona Jacira e irmã da Verônica, com quem um dos meus irmãos se casou (eles têm dois filhos e uma neta).

As amizades eram muitas! A gente era feliz, brincando na rua, vivendo a infância como tinha de ser. À noite, nos reuníamos para jogar vôlei – sob o risco de embarcar a bola na casa de algum vizinho e ver cumprida a ameaça gritada de dentro “se cair aqui, eu corto!”. Brincávamos de bandeira; boca de forno; pera/uva/maçã/salada mista; cantiga de roda; sete pecados; pula corda; 31 na mancha... em grupos menores: jogo de pedras; detetive e ladrão; damas; pega-varetas; baralho. “Brincar de elástico” era magnífico! Ah, e tinha também os guisados, no quintal de casa, quando a gente cozinhava comidinhas de verdade em panelas improvisadas.

Meu pai, sempre muito festeiro, num dos dias que se seguiram ao da mudança, um ou dois dias depois, não me lembro, resolveu fazer um forró. Ele, assim como minha mãe, amava festa em casa e forró, muito forró. Eram tempos em que as pessoas se reuniam em uma casa pra dançar, na maior tranquilidade. Não precisava alugar mesa, gastar com decoração, um monte de comida... nada disso! Bastava servir uma cachacinha (às vezes uma caipirinha para as mulheres) e colocar a radiola pra tocar Aldo Sena, Alípio Martins, Carlos Santos ou João Gonçalves.

O povo dançou, se divertiu e foi tudo muito feliz. Mas, em consequência do arrasta pé, o cimento da sala, que ainda não estava firme o suficiente, teve que ser refeito pelo meu pai, que pouco se importou. Minha mãe, sim, ficou indignada, falou ainda algum tempo sobre isso manifestando reprovação à atitude de meu pai, de não ter esperado mais dias para aquele evento.

Mas essa foi só a folia inaugural. Depois, em outras datas comemorativas, tivemos mais festas, organizadas por um grupo de crianças, liderado por mim, com apoio do meu pai. Uma delas foi um desfile para a escolha da mais bonita da rua, com direito à faixa (de papel higiênico) do qual participei como apoio (não desfilei, obviamente, feinha que só!).

Meu pai fez uma passarela de madeira, saindo do portão da nossa casa, a coisa mais chique do mundo! As candidatas desfilaram de vestido e depois, claro, em trajes de banho. Amélia foi a vencedora (uma artista polivalente, revelada entre nós: desfilou, foi paquita, interpretou a boneca Geleia e a princesa engasgada, foi noiva da quadrilha...).

Das tantas festas que fizemos, tenho lembranças boas da maior. Nesta, para contar com apoio de adultos, dentre os quais a Dona Jacira, propusemos a cobrança de ingresso (um dinheirinho que qualquer criança teria) pra doação do valor arrecadado para a igrejinha do Alto da Esperança, em construção à época.

A festa aconteceu num Dia das Mães, se não me falha a memória, na “escolinha do seu Antôin” e, apesar de alguns problemas técnicos, como a falta de energia quase na hora de começar o evento, deu tudo certo. Contou com apresentações artísticas do melhor elenco que conheci: meus amigo!

Entre danças e representações teatrais, Valdemir (Mí) fez a velha surda do programa “A praça é nossa”; Tina interpretou brilhantemente a empregada Maria Doida; dançamos “Lacinhos cor de rosa”, de collant e meião telado (a melhor recordação de minha infância); Neide incorporou a Xuxa, dançando Arco-íris e outras músicas, acompanhada das paquitas Cristina, Tina, Amélia e Aleuda; dançamos “Rivers of Babylon”, que contou também com as dançarinas Fatinha do Tio Macedo e Ameline; e Balão Mágico, com a grande participação da Regina, irmã de Teresa, que, apesar do seu esforço nos ensaios, nunca conseguiu alcançar a harmonia no movimento dos ombros e braços.

Gente, aqui um parêntese para falar de Seu Moisés, ícone da rua. Não dá pra falar das memórias de minha rua, sem mencionar esse homem, o guardião, aquele vizinho que dá conta de tudo (toda rua tem um desses). Eu tinha meus dezessete anos, mais ou menos, e certa vez, enquanto eu passava, ele, da calçada, voz arrastada de homem de idade, em tom irônico, disparou:

- Esse banco tá fechando muito tarde...

Eu era bolsista do Banco do Nordeste e, claro, o povo sabia. Na cabeça dele eu trabalhava numa agência, que fechava às 16h, o que nunca aconteceu, pois minha lotação era na Associação dos Aposentados. Mas a hora que eu chegava não era da conta de ninguém. Mesmo assim eu me senti incomodada.

Pois bem, fechado o parênteses... tempos atrás, numa postagem no Facebook onde eu pedia às pessoas que falassem sobre algo que fizesse referência a como havíamos nos conhecido, Keulia escreveu:

“A chegada de uma família com a união, onde tudo é festa, prosa e rimas... tenho boas lembranças dos testamentos para malhar Judas...”

Que bacana! Eu quase ia me esquecendo do Judas: meu pai fazia um boneco, vestia-o de paletó, e o pendurava, no Sábado de Aleluia, quando a vizinhança se reunia para a leitura do testamento, feito por ele, e a queima do boneco, em meio a gritos e algazarra de adultos e crianças, que se divertiam malhando Judas, evento tradicional que meu pai trouxe do interior.

Bom, há outros eventos que vivenciamos naquele tempo, os quais renderiam enredo para um livro, como: as festinhas do Dia das Mães (Celiane e Elane cantando, segurando florezinhas), Páscoa e Dia das Crianças; o “Arraiá do Lampião”; os bingos dançantes na quadra do Celi; as festas no XV de Novembro, no tempo da Turma do Circuito, Embalo Cidade, Furacão 2000, Agito Jovem e Arroz com fumo. (Neide e Tina chegavam a nossa casa junto com o anoitecer, trazendo as roupas, porque se ficasse tarde a Vó Maria não deixava elas saírem).

Há muito que recordar, não caberia numa crônica, aqui é apenas uma enxurrada de recordações que me veio, mas há nomes, muitos nomes, que não citei, mas estão todos nas memórias do coração; e muitas histórias, algumas que não me recordo bem, mas todas num espaço especial de mim, como parte do que sou.

Tenho orgulho dos meus amigos da infância, meus vizinhos, e gratidão especial pelo que representaram na minha formação. Sou grata pelas amizades e pelos anos de convívio nessa rua, onde tantas experiências vivi.

Por fim, minha homenagem aos que habitam o campo da saudade na memória da Rua Consunel, aqui representados por: Dona Ceiça (minha mãe), Seu Moisés, Nandim, Vó Maria e Dona Mundica.

***

Descobri recentemente que Consunel seria alusão a uma ilha mexicana de nome “Cozumel”. Outras ruas do bairro têm o nome de cidades do México, embora com equívocos ortográficos. A motivação teria sido o título de tricampeã da seleção brasileira, na Copa de 70, sediada no México. A felicidade foi tanta que alguém achou por bem render homenagem àquele país (li isso no Tribuna do Ceará, mas desconheço dados oficiais).

Maria Celça
Enviado por Maria Celça em 17/02/2018
Reeditado em 17/02/2018
Código do texto: T6256839
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