Era uma daquelas tardes monótonas e previsíveis. Na rua calma e sem calçamento de cidade do interior ouvia-se apenas o rotineiro burburinho festivo das crianças brincando e correndo. Aquela rua, bucólica e sossegada de Patos de Minas dos anos 60, mais parecia a extensão do quintal de quem ali vivia. Cães, gatos, patos e galinhas dividiam espaço com as crianças na divertida arte de nada fazer. O lugar era chamado, carinhosamente, pelos moradores de, Cercado; uma alusão feita aos muros que cercavam as quatro casas vizinhas dentro daquele terreno. As mães ficavam por ali; lobas atentas à suas crias.

De repente, gritos, correria e confusão. A monotonia fora quebrada por um acidente de carro. Uma galinha distraída acabara de ser atropelada. Ficara ali no chão tentando, com dificuldade, se levantar. Tinha uma das pernas quebradas. Talvez uma asa também. Nunca se soube.
Maria, a dona da galinha, não quis saber dela:
– Não tenho coragem nem de olhar – disse afastando-se com uma de suas crianças nos quadris. – Fica com ela pra você, Conceição. Vai ter que sacrificar. Faça para o jantar.
– Não tenho coragem de matar criação. Nunca matei, é o Alziro que sempre mata pra mim. – disse Conceição segurando com cuidado a galinha que já agonizava.
Mas, Alziro não estava e alguém teria que sangrar a galinha. Conceição chamou um dos seis filhos. A terceira, aquela espevitada de sete anos que fingia ter coragem pra tudo. Medo tinha, mas com medo ia, e fazia.

Conceição, minha mãe, sabia preparar – como ninguém – uma galinha com açafrão, cebola e pimenta, de dar água na boca. Mas, não matava. Não, isso não. Jamais matara uma galinha. Contava que quando muito jovem ao sangrar uma galinha, a mesma não morrendo, ficou a correr pelo quintal sangrando com o pescoço cortado. Aquilo a afligira e a abalara grandemente. Prometera a si que nunca mais mataria uma criação de Deus.

Minha mãe era corajosa, guerreira e batalhadora, mas isso não incluía matar uma galinha. Filha mais velha de uma família de oito irmãos fora criada com muita dificuldade pelos pais. Talentosa e inteligente gostava de estudar. Tinha facilidade com números tendo trabalhado por muitos anos no comércio da pequena cidade de Carmo do Paranaíba para ajudar os pais em casa. Sempre batalhando conseguira colocação como professora na área rural. Para alegria das crianças e orgulho dos irmãos. Sua mãe era dona de casa e seu pai saíra cedo do lar para tentar a vida no garimpo e por lá falecera. Casou-se com um homem apaixonado por ela, o Alziro – cujas cartas de amor ela guarda até hoje – e construíram uma família com seis filhos. Esse homem apaixonado – meu pai – confessou mais tarde que se não fosse a ajuda dela, não teria conseguido vencer as tantas dificuldades que a vida lhes impôs.

Mas, voltemos à galinha. A ideia de uma galinha no jantar em um dia comum da semana alegrara e animara a todos. O alimento na nossa mesa era sempre com muita dificuldade e aquele jantar seria um banquete para nunca ser esquecido.
Disse minha mãe à filha espevitada, de apenas sete anos, ensinando-a a sangrar a ave agonizante:
– Pisa de leve nas pernas dela, segura as asas com uma mão e com a outra você passa a faca no pescoço dela de uma só vez.
Quando passei a faca pelo pescoço daquela pobrezinha, uma, duas, três vezes, foi que percebi que a faca era totalmente cega. Só fiz machucar a infeliz avezinha. Então, naquele instante, temi decepcionar mamãe repetindo aquela cena que tanto a afligira no passado; uma galinha correndo pelo quintal com o pescoço sangrando. Enchi-me de coragem e não soltei a pobre. E foi assim que matei, enforcada, minha primeira galinha. E foi também a última.

 
© Suzana França 2017: Da série: Histórias que a vida me deu.

 
Suzana França
Enviado por Suzana França em 24/02/2018
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