O texto que quero escrever pra você.

O escritor é um ser proteico, tem que assumir todas as formas. Sou tudo quando escrevo, não tenho uma geografia de mulher, minha cabeça se apropria de todos os corpos, sem o que meu texto fique pela metade. A permuta de máscaras enriquece a percepção de mundo. Tenho todos os sexos, sou panteísta, mas também sou especificamente uma mulher que aporto aquilo que me engendrou. Sou politicamente uma mulher. A política do meu gênero aparece no meu texto.” Estas são as palavras de Nélida Piñon, mestra na arte de seduzir através das palavras. Fiquei tocada quando li sua obra e como ela defende o direito de o escritor escrever sem a obrigação de agradar a quem quer que seja.

Outro dia recebi por e-mail a proposta de um blog que tinha interesse em me contratar para escrever uma coluna semanal e me oferecia a possibilidade de ser reconhecida através de um veículo online de expressiva participação na mídia e um grande número de acessos. Fiquei extasiada quando li as primeiras linhas da proposta e viajei na batatinha, já imaginando o que iria escrever, quantos temas eu poderia abordar, etc. etc., mas brochei geral. No final da mensagem havia uma pequena observação: “a senhora deverá escrever apenas sobre os temas que nós — editores do blog — permitirmos serem abordados. Não serão permitidos temas sobre injustiças sociais, violências, nada de temas políticos, nenhum tema erótico. Nós é que ditamos as regras e o conteúdo, pois só trataremos de temas leves, sobre beleza, bem-estar e consumo, e a senhora também não poderá assinar seu nome. Os textos serão de propriedade do blog e nós daremos os créditos a quem quisermos e não pagaremos nenhum montante sobre os textos enviados”.

Li e reli o e-mail e ia retornar mandando um “vão se fu…” mas respirei fundo e respondi aos editores do SGB — supérfluo grande blog — agradecendo a lembrança do meu nome, mas enfatizei com uma característica que me é familiar, a finesse: “Prezados editores, não sou uma promíscua das letras e quando me interessar em ser contratada para escrever por encomenda, com temas escolhidos e não receber sobre os créditos do meu trabalho, abro mão de assinar como escritora e assinarei como uma publicitária anônima. Mas quero receber financeiramente e receber muiiiiiito pelos meus textos, ok? Já que é para me prostituir, que eu seja bem paga. Obrigada.”

Nada tenho contra publicitários; cada um no seu quadrado. Porém, penso que um escritor deve expor seu pensamento sem rótulos, deve escancarar sua indignação com as injustiças sociais com um texto cáustico sobre as mazelas da justiça, da política, dos desmandos dos poderosos, tanto quanto despejar a sensualidade dos seus momentos eróticos em textos quentes ou fazer reflexões sobre a vida, morte, dor e transcendência sem amarras e fórmulas literárias prontas. Tudo deverá apenas depender do seu estado de espírito, do seu insight pessoal.

Quem me conhece sabe que por muitos anos escrevi sobre o mundo da beleza, em textos sob encomenda, com a intenção de agradar a consumidores e não leitores da literatura nua e crua. Não considero meu passado desmerecido, mas alto lá! Hoje quero escrever reflexões sobre o universo humano, suas contradições, seus vícios, suas crises, suas barbáries e sua decadência, ou suas virtudes e generosidades, seus empoderamentos e suas resiliências. Não quero mais escrever sobre os benefícios dos cremes anti-idade, nem do rímel que gruda nos olhos e não escorre, nem da cor de batom da temporada, nem dos tratamentos de última geração para celulite. Quero discorrer sobre temas mais contextualizados no meu momento. E a única ferramenta de que necessito para descrever minha insatisfação com as peçonhas humanas é uma pena moderna chamada teclado.

E escrevo sem maquiagem, de cara e alma lavadas, saindo da minha zona de conformismo e de conforto e tentando chamar a atenção, com o objetivo de desalojar a injustiça da sua casa natal, nossa pátria mãe gentil, que não tem sido nada gentil com seus filhos e filhas. Como consequência, temos que conviver com um país alquebrado pelas falcatruas, mendigando respeito de outros países. Domesticamente, estabeleceu-se total falta de respeito, endêmica, também pelo cidadão honesto, pai, avô, arrimo de família, que precisa mendigar o recebimento de uma rescisão trabalhista que lhe era de direito, por conta de roubalheiras de empresas que desfalcam os trabalhadores e são minimamente ou nem são punidas. Fico fula da vida quando recebo uma proposta indecente para escrever sobre amenidades quando eu não desejo amenizar minha consciência e participação como escritora e cidadã que sofre como tantos as barbáries gerais dos desvios de recursos indevidos da minha pátria.

E por falar em indignação, recomeço minha série de crônicas 2018, aplaudindo a sentença proferida pelos juízes que bateram o martelo e condenaram um dos judas made in Brazil: um ex-presidente que traiu nossa confiança em um país mais justo, menos pobre e deixou nosso país à míngua, quebrado e sem esperança. Obrigada, magistrados.

E quanto a uma certa emissora que oferece quinze segundos de fama em troca de um vídeo que retrate apenas as belezas e esconda as mazelas do nosso dia a dia, me aguardem! Vou escrever sobre dicas de como fazer uma live em um lixão.

Chega de hipocrisia, de falácia e de enganação.

Pronto, escrevi.

Madalena Costa
Enviado por Madalena Costa em 27/03/2018
Código do texto: T6291858
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