Olha pra quem te comeu!

Alguém me disse que a chula provocação do título desta crônica, quase uma ordem, poderia ter saído da boca de Romeu, depois de certo tempo de convivência com sua Julieta, mas tenho cá minhas dúvidas. Isso demanda tempo e os dois não chegaram a ter intimidade suficiente para tal palavreado. Como dizem, não chegaram a comer juntos o quilo de sal necessário.

Pelo menos, a expressão não se enquadra na moral elisabetana nem parece que Shakespeare fosse adepto desse tipo de linguagem. Diria, melhor, que é uma forma do que hoje se chamaria “bullying”. Esse termo inglês, aliás, não tem nada de novo: “bolir com alguém” é praticar bullying. Essas atitudes sempre foram chamadas de “gozação” por rapazes e adolescentes da Pitangui das décadas de 50, 60 e talvez até 70. Um mundo do qual as meninas, moças e senhoras não participavam.

Nessa linha de raciocínio, impossível não passar ao conceito de intertextualidade para explicar porque nós, daquele tempo, ríamos a bandeiras despregadas e os mais jovens, hoje, não vão achar graça nenhuma nessas brincadeiras. É que não temos as mesmas referências. Intertextualidade, diz uma amiga minha, teórica da Literatura, são as experiências comuns, onde meias palavras ou até mesmo um piscar de olhos fazem milagres na compreensão.

“Olha pra quem te comeu”, expressão eivada de preconceitos, tinha várias respostas, todas começando com “quem te comeu fui eu”, refrão, base linguística com métrica e rima suficientes para gerar um poema épico ou um cordel pornofônico. Exprimia as fobias mais diversas, mas, convenhamos, muitos repentistas e poetas de hoje podem ter começado aí suas trajetórias artísticas, defendendo-se dos bolinadores orais daquele tempo. As respostas a essas provocações eram repentinas, contundentes, muitas vezes rimadas e metrificadas.

A deturpação da palavra “anuviado”, por exemplo, outra bolinagem muito apreciada, gerava outra pegadinha: um sacana vinha fingindo ter algum cisco no olho, chegava perto, encarava você e, levantando a pálpebra, disparava:

- Olha se eu tô com olho nuviado.

Tempos de antanho.

- Quem entra? Essa não posso responder até hoje, porque tem palavra monossilábica que minha mãe proibia terminantemente em casa, aquela que costumava aparecer pichada – e acentuada - nos muros da cidade. Essa palavra até hoje não consigo pronunciar em voz alta. São duas letrinhas, apenas duas letrinhas, mas por ela apanhei de chinela. Em tempo, a rima dessa última oração é casual.

Já a popular PQP, hoje apenas uma interjeição usada depois de uma falha gritante de zagueiro ou pela visão de uma mulher estonteante, já me fez ficar sem matinê no Cine Pitangui por quatro domingos. A primeira parte da expressão é hoje usada até em ambientes mais seletos, apenas um adjetivo a mais, invariável o termo, mas obrigando a flexão dos artigos no masculino e feminino:

- Uma p.... festa, um p... jogador.

Antes de encerrar, lembro que até um de meus tios maternos, tio Zezé, muito brincalhão, me dizia em tom de elogio, no qual, inocentemente, acreditei por muito tempo:

- Olha o menino que Deus guarda atrás da porta.

“O tempora, o mores”. Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes, mas a vontade de rir não acaba nem muda. E se você se lembrar de outras sacanagens do gênero, favor me contar. De repente, dá pra escrever uma enciclopédia ou algo parecido. E, voltando a Romeu, continuo acreditando que o jovem Montecchio não teria tido essa ousadia, mesmo que Shakespeare, grande conhecedor da alma humana, tivesse outro entendimento.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 17/04/2018
Reeditado em 24/03/2022
Código do texto: T6311269
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