Eu, Cinzeiro

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Estou limpo. Mesmo assim, as pessoas quando passam, lançam-me um olhar de desprezo, como uma espécie de repulsa, dando a entender que sou um mal necessário para o bem-estar da sociedade, para a manutenção das relações ‘cordialmente’ automatizadas.

Chega um Senhor perto de mim. Aparentemente uns 50 anos, barba grisalha por fazer, respiração cansada. Tem cara de quem não aguenta mais o tranco, que não vê a hora da aposentadoria, se é que esta lhe trará paz. Afrouxa a gravata, e acende um cigarro. Seu olhar é triste, e por trás desse cansaço há uma vitalidade reprimida, uma alegria forçadamente escondida pelo ritmo frenético da cidade.

A primeira baforada lhe traz o alívio, a dose necessária de suporte emocional diante do medo e paranóia modernos. O cigarro é seu amigo, lhe entende, dá conselhos de fumaça.

De fato, o fumo era uma arte nas grandes cidades do mundo. Havia uma espécie de sensualidade em acender o Marlboro das propagandas, um exibicionismo de nicotina. Viam-se as atrizes loiras do cinema americano e seus amados numa comunhão das baforadas. Era a sensualidade da fumaça.

Hoje não. Vocês acendem o cigarro como fuga, como se o tubo coberto de fumo e nicotina fosse o alívio salvador, a luz no fim do túnel, o mitigador do sofrimento materialista.

Já vi muitos tipos por aqui. Jovens de 15 anos experimentando a liberdade da prisão, a sensualidade do futuro câncer de pulmão, a sensação de integração em sociedade, que vêem nas propagandas.

Já vi universitários, ainda jovens fumantes, jogando sinuca e rindo-se das bobagens ditas entre as baforadas.

Pais irritados, que acendem o cigarro depois de dar bronca nos filhos, vendo na fumaça a medida educativa, a demonstração de autoridade paternal. O trabalhador e chefe de família e sua baforada merecida.

Já vi tipos que não deveriam fumar, por conta de doenças, e mesmo assim aspiravam a fumaça tentadora. Vai ver é a tentativa de auto-destruição que todos temos um pouco, quem sabe...

Parei para pensar em algo outro dia. Se, ao invés de as pessoas fumarem, usassem o dinheiro do maço em ajuda a outras pessoas e resolvessem seus problemas íntimos de ordem emocional, teríamos um mundo menos cinzento de fumaça. Veríamos menos homens e mulheres precocemente enrugados. Menos baforadas hostis em locais públicos. Existiriam canudos brancos sim, mas os de suco e água.

Mas, de certa forma, eu existo por causa do cigarro...Que coisa,não? Saber que existo pela coisa que odeio não é nada fácil, tampouco agradável. Mesmo assim vou levando a vida, entre uma bituca e outra. Eu sou feliz por aliviar o sofrimento alheio, entre uma bituca e outra.

Agora chega. Como deve ser desagradável um cinzeiro filósofo! Nada mais chato do que algo que censura e critica a atividade prazerosa do dia-a-dia, não?

O homem do começo da história já largou sua bituca por aqui. Saiu com uma cara aliviada. Fico feliz por ele. Enquanto isso, me limpam, retirando os cigarros deixados, e lustrando-me, de modo à minha aparência ser agradável. E continuo observando as pessoas. Entre uma bituca e outra.

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