A senhorinha de Copacabana

Hoje, me permito ter esperança. Amanhã também.

Uma das tarefas mais difíceis dos seres humanos atualmente é manter a esperança em um mundo tomado pelo caos, desordem e penúria afetiva. Parece que nós, os terráqueos, estamos nos especializando em esfolar o coração alheio com o punhal da violência doméstica, do flerte com a maldade e com a banalidade das relações humanas.

Às vezes, tenho a sensação de que os mais puros sentimentos, a espontaneidade e a sinceridade malograram há tempos, diante de tanta barbárie e tanta indiferença pela vida, e que as palavras “respeito” e “honestidade” caíram em desuso. Sobre a gratidão e respeito pelos mais velhos então nem se fala, isso é coisa de gente idiota. Gente esperta não tem tempo nem disposição para esse tipo de sentimentalismo.

No final de semana, tentei fugir da Matrix — digo, da internet —, e me desligar por alguns dias das notícias ruins e corriqueiras sobre o mar de lama e a falta de vergonha na cara dos nossos políticos, que nos usurpam o direito de viver uma vida minimamente digna e desopilar meu fígado por alguns momentos, afastada da raiva e da poluição das manchetes dos jornais, TVs e redes sociais. Mas, infelizmente, vivo no planeta Terra, e ficar sem acesso a qualquer tecnologia hoje em dia é ficar à margem até das notícias mais elementares, aquelas que nos tranquilizam o coração, tais como saber se nossos filhos que moram longe estão bem, se conseguiram chegar da faculdade ou do trabalho sem sustos, se não foram assaltados, se estavam agasalhados etc. Coisas de mãe e de qualquer cidadão que tenha o mínimo de afeto e consideração por um ente querido, um vizinho, um amigo ou até por um desconhecido.

Infelizmente, a maior parte das notícias que nos tranquilizam chegam até nós através da internet, do WhatsApp e das redes sociais, onde vigiamos e somos vigiados. E este foi o motivo pelo qual acabei jogando a toalha, liguei o notebook e o celular para saber notícias do meu neto que mora em outro Estado e me deparei com a imagem de um vídeo que me retorceu o estômago e me deixou tonta de raiva pelo resto do dia. Na imagem, um sujeito com cara de psicopata ameaçava a mãe, uma senhora de mais de 80 anos, com inacreditáveis armas de tortura medievais e em plena luz do dia, ops!, luz da câmera de um celular. Aquela cena de brutalidade e covardia me tocou fundo, pois a idosa aterrorizada que estava sendo vítima daquele crápula implorava misericórdia e o chamava de senhor, mas era a “senhora mãe dele”.

Pesquisei a história da idosa e descobri que era uma professora aposentada, que havia sido muito importante na sua cidade, e que sua aposentadoria era bastante razoável. O filho se aproveitava da fragilidade dela, não trabalhava, a ameaçava e a maltratava, e ainda por cima fazia uso dos ganhos da mãe sem cerimônias. O vídeo viralizou e o agressor foi preso. Bem feito. Agora é ele quem está aterrorizado, com a perspectiva da pena nada agradável e da recepção que deverá obter dos companheiros de cadeia, junto aos quais deverá ficar um bom tempo, caso não encontre um advogado do diabo que o defenda e encontre alguma brecha na lei que o absolva. Vergonha.

Entre a dor e a revolta, me lembrei da situação de uma senhorinha que morava em Copacabana e era auxiliada por uma cuidadora geriátrica. A lembrança não envolveu nenhum episódio de violência física, mas sim a mais sutil das violências, que é o abandono afetivo. A senhorinha era bastante culta, lia muito, mas nos últimos meses não enxergava uma linha, e a solícita cuidadora, que era minha conhecida de longa data, sugeriu que ela me contratasse uma ou duas vezes por semana para ler pra ela. Quando a conheci, fiquei apaixonada pela simplicidade daquela senhorinha tão rica, tão fina, mas tão sozinha e carente de atenção.

Em uma das minhas visitas de leitura, ela me confidenciou que seu maior medo não era de ficar doente, sem dinheiro, ou sem um lar, mas perder a lucidez e ser cuidada pelos filhos ou noras. Fiquei admirada, pois percebi que não confiava nos próprios filhos, e muito menos na reciprocidade de seus sentimentos. Segundo relatos de terceiros, a senhorinha de Copacabana, a exemplo da senhora do vídeo, também havia sido produtiva, como chefe de um departamento médico de um grande hospital. Era uma médica afeiçoada aos pacientes, uma ótima chefe e uma amiga muito solícita, além de ter sido uma mãe exemplar e dedicada que, no final da vida, foi praticamente abandonada pelos filhos e preferia ser cuidada por uma desconhecida, mas que a tratava como um ser humano.

Meses antes de falecer, ela me fez ler um dos mais belos textos que havia escrito, quando suas articulações ainda não haviam sido comprometidas pela artrose e ainda enxergava um palmo adiante do nariz, e pediu que eu o guardasse com carinho. Se quisesse, poderia publicar com os devidos créditos à “Senhorinha de Copacabana”, sem fazer menção ao seu nome verdadeiro. Então republico o texto em forma de reflexão, como agradecimento por sua generosidade de ter me confiado algo tão íntimo e tão valioso.

Sei que estou no fim dos meus dias na terra. Não me revolto, nem me angustio pela proximidade da minha morte, apenas me consolo e me conformo, apesar do embaraço que sinto no espelho do banheiro quando procuro meu rosto entre os restos das lembranças, e o encontro embaçado pelo gasto dos anos e a idade avançada e constato que minha tez, antes tão clara, hoje está manchada pelas marcas do tempo e a senilidade das minhas palavras.

Minhas belas pernas, que corriam como gazelas desembaraçadas e ágeis, atualmente tropeçam entre si disputadas pela artrose. Torço, sem muita força, minhas mãos que já foram firmes, acariciaram corpos, afagaram faces, colheram flores e seguraram taças de vinho, muito embora hoje estejam trêmulas e calosas e tateiem em vão a mesa da cabeceira à procura dos óculos e do tempo perdido. E o que dizer do meu corpo, outrora vigoroso como uma rocha esculpida de rara beleza? Hoje, tornou-se uma planta frágil, necessitando de água, sol, luz e “calor humano” constante para sobreviver.

Fui moça, fui mulher, e hoje sou velha, mas a vida que vivi valeu a pena, pois, apesar de tudo, minha alma permanece jovem e meus sonhos permanecem meninos.

Minha criança interior vibra de alegria, pois sei que o pouquíssimo tempo que ainda me resta é o tempo da plena felicidade, e da certeza de haver cumprido a missão que me foi confiada pelo grande poder criador a que chamam de Deus. Eu o chamo de “eterno”, e depois que eu me for, desfrutarei do tempo da eternidade com alegria. Afinal de contas, vivi e devo morrer em Copacabana, e eu e ela seremos sempre jovens, sempre belas e sempre eternas.

Assinado: uma velha sábia, uma mulher que quer ser lembrada como a mulher que da janela do seu apartamento na princesinha do mar via o sol nascer e morrer e as ondas do mar fazerem a festa da natureza.

Por estas e outras é que eu, Madalena Costa, termino este texto emocionada, me apegando a um fio de esperança, pois ouso acreditar que ainda há gente que consegue ser feliz apesar das tragédias pessoais. E não serão os filhos degenerados, tampouco os homens maus de Brasília que me farão perder a fé na bondade e na humanidade.

Madalena Costa
Enviado por Madalena Costa em 19/04/2018
Código do texto: T6313054
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