Crõnica de um olhar diferenciado. João Ayres

Crônica de um olhar diferenciado. Atrocidades Cotidianas.

Autor: João Ayres

Chegamos ao ponto no qual nossos olhares se perderam de si mesmos. Ver não é olhar e por isso perdemos a capacidade de projetar nosso estar no mundo, agindo por semelhança e repetindo práticas de comportamento banais e medíocres.

A mídia digital tem seu valor no sentido mesmo de que estreita as distâncias entre pessoas e torna mais rápido e fácil o acesso a todo e qualquer tipo de informação.

Por outro lado, força nossos cérebros a não se concentrar lançando uma carga violenta de conteúdos bem curtos e que aparentemente prometem uma rápida absorção, mas que na verdade se alinham à lógica do capital oferecendo textos reduzidos e superficiais tão digeríveis quanto os sanduíches venenosos das lanchonetes que se espalham pelo país.

Hoje em dia vemos teses universitárias retiradas da internet, observamos claramente uma resistência terrível por parte dos usuários das redes sociais no sentido de ler textos longos. Apagam os mesmos e se sentem bem por causa de tal coisa. Causa-me espécie ainda o fato de alguns intelectuais encararem tal situação com excessiva naturalidade.

O ver que não é olhar aponta fatalmente para um ato involuntário e sugere que vemos tudo ao nosso redor pelo fato de sermos dotados de sentidos, sendo a visão um deles.

Vemos tudo à nossa volta como autômatos e não como seres potencializados com vontade própria. Este ato de ver diz de uma percepção de mundo plastificada pelo que denomino de coisificação do ser humano que mal consegue sentar numa cadeira confortável e ficar mais do que quinze minutos lendo um livro digital ou físico, pois sente vontade de fazer alguma coisa, de ir até a geladeira para procurar o que comer ou beber, num diálogo mudo com um objeto inanimado. Sente sono pelo fato de que o silêncio inerente à leitura incomoda a dinâmica do mundo barulhento estimulado pela televisão ou rádio ligado o tempo todo com músicas que privilegiam o torpor mental, o enrijecimento da mente que precisa de alimento para sobreviver a tudo isso.

Vemos tudo ao nosso redor e creio mesmo que deveríamos nos perguntar que tipo de gente queremos ser. Atrocidades como estas passam despercebidas e atestam a vitória de máquinas de embotamento mental, de uma sociedade que privilegia um jogo de trocas que extirpa das relações o pensamento, o afeto, substituindo-os por um processo de eliminação ou inclusão definitivamente temporário de acordo com os interesses em questão.

O ver aponta para o que é simplesmente de acordo com a leitura deste aparato de embotamento mental. Nossos olhos são o espelho das almas anestesiadas que vagam por aí em restaurantes, em igrejas, nas casas de amigos, em vinhos caros ou carros importados. Nossos olhos são o espelho das almas anestesiadas nos segmentos menos favorecidos que não dispõem de acesso à educação, massacrados e oprimidos e mantidos no patamar da ignorância, alvo fácil para manipulações políticas de toda sorte.

O ver sugere um acordar e fazer a refeição matinal com desespero manipulando o celular à procura de comentários rasos ou número de curtidas na página. O ver significa curtir um texto sem o ler pelo fato de ser longo ou de não falar de banalidades. Significa sentir uma agonia no corpo pelo fato deste ser de alma plastificada não suportar ficar sentado ou parado em silêncio quando de qualquer refeição. Significa não suportar a possibilidade de se parar um minuto que seja e fechar os olhos e respirar o ar que é nossa força motriz. A meditação é subversiva, o mergulho para dentro de si mesmo é, para aqueles que estão aprisionados neste infinitivo ver, e que por sua vez sugere um presente que se furta de si mesmo englobando passado e futuro, definitivamente aterrador.

Não ter paciência nem para ler uma bula de remédio, não ter paciência para falar ao telefone, não ter paciência com as pessoas, não ter paciência para escutar um amigo e não ter paciência para escutar músicas de outra natureza consideradas chatas.

Estes e outros problemas começam na infância através da reprodução deste maquinário repetitivo e pouco criador. Os alunos são adestrados na escola na qual, com belíssimas e raríssimas exceções, caminham na direção contrária à emancipação intelectual do indivíduo.

Os alunos não têm voz, não são capazes de se expressar coerentemente quando do término do primeiro e do segundo grau na maioria das escolas públicas. Nas escolas privadas o nível é ainda decididamente baixo, quer queiramos ou não.

Poucos livros são lidos nestes estabelecimentos. Não há uma tradição de leitura nas casas de família e em função disso chegamos onde chegamos e não se trata aqui de pessimismo sem solução.

As atrocidades cotidianas estão precisamente aí, nesta falta de paz interior necessária à libertação do ser humano em geral. Um espírito que desde cedo é estimulado na escola, na família e em outros agrupamentos sociais a ler e discutir e a imaginar algo, torna-se um ser criador, um ser que deixa de ser um mero reprodutor deste maquinário rasteiro.

Digital ou físico, o livro ou texto precisa ser lido e debatido com os pais, com os professores e com os colegas o tempo todo. O ver se metamorfoseia em olhar potencializado na medida em que o pensamento passa a fluir.

Os cursos de retórica foram retirados dos currículos escolares e até então eram peça importante para a expressão do aluno. Ir para frente da turma simplesmente para falar sobre um romance ou um texto relativo à comunidade ou coisa do tipo incomoda, pois pode suscitar debate e obviamente produção de pensamento.

A retomada do ato de contar histórias representa avanço significativo em termos de libertação mental do aluno na medida em que desde muito cedo ele se encontra exposto a um conteúdo numa relação direta de ser humano para ser humano e não de mídia para ser humano, o que a meu ver favorece uma interação entre leitor e contador podendo gerar diálogo real sobre tópicos ricos e variados.

Estimular o olhar e não simplesmente o ver. Olhar para uma cadeira, para uma mesa, para tudo que o cerca como pai ou como educador e estimular a curiosidade de um filho indagando acerca da origem das palavras em questão. Mostrar por exemplo que cadeira vem do latim cathedra, que significa cadeira de braços destinada aos professores e às autoridades eclesiásticas. Relacionar derivações para esta palavra como em catedrático e outras coisas do tipo. Falar ou pesquisar juntamente com o filho ou aluno sobre o Latim, sobre a geografia relacionada a este idioma, isto tudo numa conversa informal durante o café da manhã ou na escola, numa aula em grupo.

Esta revolução deve ter início em casa, nas conversas entre mães e pais e filhos que têm acesso à educação, mas que estão contaminados pelo vírus da ignorância pasteurizada que permeia suas existências vazias.

Esta revolução tem início em centros de resistência e os professores têm que se mobilizar para tocar os corações de mães e pais de alta e baixa renda convocando-os para encontros na escola e mostrando também a eles o caminho da leitura seja de que forma for.

Olhar e imaginar e pensar e quem sabe produzir algo a partir daí.

Não é à toa que depois de certa idade vários homens e mulheres tendem a se tornar alcoolátras. A falta de projeto mental estimula este tipo de situação sobremaneira calcada no fato de que a mera possibilidade de se aquietar a mente se torna insuportável, pois o maquinário não pode sobreviver com a desaceleração do sistema.

Pergunto sempre a todo mundo qual o tipo de livro que estão lendo ou se estão lendo alguma coisa.

Concordo com a assertiva de que um país se faz com homens e livros e tenho esperança de que possamos vencer esta nova ditadura da ignorância com roupagem moderna e midiática.

Existe um mundo para além dos reality shows e filmes enlatados e mídias sociais repletas de tolices com status de verdade.

É precisamente a incapacidade de formar imagens mentais, devido principalmente a este bombardeio sistemático no cérebro, que estimula o uso de drogas e coisas afins que por sua vez prometem as ilusões temporárias de experiências alucinógenas e definitivamente nocivas à saúde.

A indústria da massificação se baseia nestes movimentos que bloqueiam qualquer tentativa de se respirar de forma diferente.

Práticas cotidianas como ficar em casa com o celular, a televisão e o rádio desligados por algum tempo, como a leitura de um livro seja ele digital ou físico que sugere um sentar confortável na poltrona ou no sofá, constituem verdadeiras subversões em relação à velocidade predatória sugerida por este maquinário catastrófico.

Cozinhar a própria comida procurando opções saudáveis, eis um exercício relaxante que nos coloca frente a frente com nossos pensamentos e também entra em conflito com este mundo repleto de ruídos assustadores e vãos.

Criar eventos capazes de fissurar esta tenebrosa estrutura, eventos cotidianos nos quais se vislumbre a possibilidade de reencontro com o eu interior num ouvir a si mesmo, eis o maior desafio para as vítimas do que se entende por modernidade. Almoços e lanches em família ou com amigos são belas oportunidades em nível de resgate da palavra, de diálogo, de exercício real e não virtual de comunicação.

O efeito desta adição maligna é semelhante ao provocado pela cocaína ou dopamina. Aliado aos alimentos repletos de poderosa química, de bebidas com alta concentração de sódio e açúcar, diria que temos um cardápio completo que muito favorece ao que denomino de desintegração mental.

Uma geração emudecida está sendo criada e temos que agir rapidamente em prol do espírito e da alma do ser humano. Precisamos fazer algo para que não sucumbamos no fluxo inexorável da mesmice e banalização.