MEU BAIRRO

Quanto tempo faz que você não se senta na soleira de uma porta, literalmente no chão?

Isso tem acontecido em nossa redondeza.

Há um determinado momento do dia em que tudo se acalma, após a azáfama da manhã, com todas as providências que o dia nascente exigiu. Aquele momento em que também não se tem ainda de providenciar as coisas que ele mesmo, o dia, já maduro de horas, enfim, precisa para acabar tranqüilo e dar entrada a uma noite gostosa.

Sabe aquelas pequenas horas após o almoço?

Quase ninguém precisa ir à loja de frios, ou à quitanda, à farmácia, ao material de construção, à frangonete, à tapeçaria e tudo o mais que tem no bairro. É hora de fazer uma sesta, curtinha que seja, sem mesmo precisar deitar-se. Basta apenas aquela pausa relaxante na correria comum.

Pois é, nessa hora, saio de casa e me ponho de prosa com a moça da loja de frios, com a irmã dela que mora ao lado, o rapaz da quitanda, a outra moça da lanchonete que vem pelos tomates e fica um instante por ali e vários outros. No começo, ficávamos conversando encostadas à porta, mas depois, sem cerimônia, uma de nós sentou-se numa saliência da parede, os outros acompanharam, foram chegando conhecidos, o carteiro que descansa sua bolsa pesada e chupa uma morcote, passa por ali o homem à cata de folhas de verduras para suas penosas. Tanta gente conhecida do nosso bairro! Para cada um há um cumprimento diferenciado. Eu pego uma bala ou uma chupeta de açúcar. A outra pega uma mexerica.

A gente conversa sobre um tudo.

As duas irmãs perderam a mãe há bem pouco tempo, atropelada de forma estúpida. Há toda uma história em torno desse fato. Para amenizar essa dor que me parece tão doída, arvorei-me de mãe adotiva e as trato com muito carinho, tomei-me de afeto por elas, como se minha amizade e atenção, de alguma forma, pudessem ajudar, não a esquecer, mas a tornar mais amena essas lembranças. É o que eu acho que gostaria de receber se eu fosse elas. Uma das irmãs tem uma menininha de 5 meses que vai de colo em colo, beijada, cheirada, querida.

Um dos donos do material de construção, entra na quitanda sem nem falar boa tarde, pega uma banana, corta um ramo de salsa do molho, um ramo do maço da rúcula, uma pimenta dedo-de-moça e se vai embora do jeito que entrou. O rapaz da quitanda fala quase que para si mesmo: esse é doido! Não é, não. É só o jeitão dele.

O homem das penosas já sabe onde estão as folhas velhas. Pega e vai embora agradecido. O carteiro deixa seu fardo pesado lá, faz a entrega em nossa quadra, volta e se vai.

A gente sempre faz algum comentário sobre as alegrias, as esquisitices e as tristezas das pessoas do bairro. Não em termos de fofocas, não. Isso tiraria a doçura daqueles momentos. Contando as coisas de cada um, conhecemos melhor o jeito diferente das pessoas e podemos até ter mais consideração por elas e pelos comportamentos diferentes do nosso. São coisas da vida.

Falamos mais das nossas próprias coisas. Cada um tem uma longa vida a contar, um monte de casos e cada um tem um rosário de conselhos e sugestões a dar. E damos. Trocamos favores e as inevitáveis receitas também. Parece que estamos numa sessão diária de terapia coletiva, porque há um complô estabelecido. Queremos bem um ao outro, nos saudamos com carinho, somos felizes de sermos vizinhos. É um pedaço do nosso mundo.

Outro dia saí de casa com duas netas para levá-las ao dentista. Do portão de minha casa até ao ponto do ônibus, caminhamos meia quadra, viramos a primeira esquina, vamos por mais duas quadras, viramos de novo, atravessamos a rua e no canteiro central da avenida chegamos ao ponto. Quando saímos do portão, a mais velha disse para a menor:

- Vamos ver quantos são hoje.

Apressada, não prestei atenção ao que disse. Ela foi contando 5, 6...10, 11 ... 17, 18.... Quando viramos a segunda esquina, a menor disse:

- São 19.

- Não, disse a maior, ainda não acabou.

Em frente à loja de produtos agropecuários, é onde atravessamos para chegar ao ponto. Virei-me e vi o moço da loja:

- Oi, Silvio, tudo bem?

- Tudo bem e a senhora?

- Estou bem, obrigada.

Completou a mais velha:

- Viu? Hoje foram 20.

- 20 o que, Rebeca?

- 20 “ois” que a senhora falou!

- Ah! Sua safadinha, era isso o que você estava contando?

Sim, era. Nesse dia foram 20 saudações que eu fiz a 20 queridos vizinhos do meu bairro.

- Sabe, vó, já cheguei a contar 28!

Nossa, coisas do meu bairro...

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 02/09/2007
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