A COR DA PELE

Vitória Gabrielly, 12 anos, calçou os patins e saiu deslizando, livre, leve e solta pela rua, conforme registrou a câmera de segurança de um ginásio. Seu corpo foi encontrado oito dias depois num matagal, com todos os sinais de um crime bárbaro. Com dificuldade para encerrar o caso, a polícia agora oferece uma recompensa de R$50.000,00 para quem der informações esclarecedoras.

Acompanhando de longe as investigações, parece-me louvável o esforço dos investigadores. Mas hoje, vendo de novo as fotos e imagens que circulam à exaustão no noticiário, mesmo com a concorrência da Copa do Mundo, uma constatação me deixou boquiaberto. Tão óbvia e tão chocante. Explico: ainda que eu não visse nenhuma imagem da vítima, eu não teria dúvida de que se tratava de uma menina branca. Branca e bonita.

Feche os olhos o prezado leitor, respire fundo, e tente lembrar-se de um único caso em que o Estado se dispôs a gastar 50 mil reais para pôr as mãos no assassino de uma criança negra. Eu não me lembro de nenhum, mas sei que, estatisticamente, morrem mais negros que brancos nesses episódios. Droga, bala perdida, acerto de contas, abordagem policial, chacinas etc. e tal.

Mas não é só o Estado. Com ou sem recompensa, façamos o mesmo exercício para localizar no cantinho da memória um trabalho da imprensa sobre homicídio de crianças negras que tenha merecido o mesmo destaque dispensado às brancas. Conclusão: para aquelas, no máximo uma reportagem. Para estas, várias edições jornalísticas, entrevistas, cobrança das autoridades etc. E os casos se multiplicam, alcançando até bebês ainda no ventre materno. Do passado mais distante ainda ecoam as manchetes sobre Araceli e Ana Lídia. Sobre o desaparecimento de Carlinhos e, depois, de Pedrinho. Crianças brancas, todas.

A primeira explicação óbvia para essa discrepância é a o legado vergonhoso da escravidão, como se não tivesse existido o 13 de maio de 1888. Como se o negro ainda não fosse gente como a gente. Do que se conclui, nas entrelinhas: branco é notícia, negro é estatística. Um gera comoção nacional; o outro, esquecimento.

Mas há, ainda, outro componente discriminatório: a beleza no padrão ariano. Os psicólogos explicariam melhor este tópico, mas eu vou tentar. Quando alguém mata uma pessoa bonita, especialmente criança, comete duplo homicídio, porque aniquila a pessoa e a beleza que ela encarnava, como se esse predicado da natureza tivesse uma identidade própria. Aí, o homicídio simples passa para crime hediondo, de que é exemplo a frase que quase todos pronunciamos ao deparar com a foto da vítima: “Que barbaridade, uma moça tão bonita!”. E a sensação, no velório, é de que as duas irão para debaixo da terra abraçadinhas: a defunta e sua beleza. Irmãs xifópagas.

Dói essa constatação. Os menos iguais do que os outros. Eu já sabia disso, mas nunca tinha tido uma visão tão clara como agora, com o anúncio dos R$50.000,00, quantia com a qual os senhores da casa grande comprariam vários escravos para jogar na senzala, mas sem gastar um vintém para esclarecer a morte de qualquer deles. Parece que não mudou muita coisa desde então.

De toda forma, com ou sem recompensa e independentemente da cor, eu torço para que a polícia ponha a mão nos assassinos da infeliz Vitória Gabrielly. Mais importante, para mim, do que a seleção brasileira pôr as mãos na taça de campeã do mundo.

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 27/06/2018
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