Uma pessoa comum

 
"Todas as coisas pobres e frágeis se parecem comigo."

(Candido Portinari)


De manhã cedo, saindo para o trabalho, retirou o lixo para levar ao coletor. Não costumava fazer isso de manhã. Fazia-o à noite, quando chegava em casa. Não gostava de lixo. Não gostava de ver as ruas tão sujas e abandonadas. E muito pior, não suportava ver pessoas em situação de rua, dormindo nas calçadas, relegadas à invisibilidade. Sim, via o que, para muitos, é invisível. E isso acabava com o seu dia.

Levou os sacos de resíduos ao lugar no condomínio reservado para isso e vejam que triste surpresa: havia uma mulher em meio ao lixo. Pequena, negra, calada, mexia nos tambores em busca de material reciclável. Colocou os sacos no chão, sequer lhe desejou bom dia. E saiu. Mas os pensamentos foram atrás. Por que não desejou bom dia àquela mulher? Costumava cumprimentar a todos. Associou todo o conjunto de imagens a tristeza. Mas que sabia da vida dela? Acaso por ser pobre, negra e catadora de material reciclável ela não poderia ser feliz, amar e ser amada, ir a festas, ter filhos? Então se deu conta de que essa tristeza também era sua. Ela vinha de dentro dos seus olhos. Porque uma parte de si era pobre, era só e era muito triste. Se reconheceu no louco falando com um pedaço de metal na praça da Treze de Maio. Na criança que dormia, suja e faminta, drogada, na calçada do Passeio Público (meu Deus, uma criança). Na moça linda, jovem e bem-sucedida que era tratada como lixo pelo marido covarde e, condicionada a se achar um nada, se jogou da varanda do quarto andar. Na dor do seu amigo mais amado que daria toda a riqueza que possuía para ter de volta a filhinha morta. E não havia nada que pudesse fazer a respeito, compras, viagens, terapia, nada mudaria esse aspecto da sua psique. Ela sempre vai estar lá. Não diz nada. Não quer nada mas, às vezes, quando está com o espírito, escreve.
 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 09/08/2018
Reeditado em 12/12/2018
Código do texto: T6414018
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