Refluxo
Quero uma resma de papel para escrever.
Mandarei fazer silêncio lá fora, na rua, pois escreverei.
Tragam-me uma caneta de barro e tinta de lágrimas para que eu escreva uma poesia que faça tremer os que nunca amaram e se matarem aqueles que nunca foram amados!
Fecharei a porta do meu quarto, apagarei a luz: Absorverei mais escuridão!
Minha alma está fria de morte e o pó destas velhas casas me cobrem, seus fantasmas me assombram enquanto minha melancolia os assustam.
Escreverei tudo aquilo que eu não sei dizer. Escreverei numa lingua estranha, num idioma desconhecido e dolorido... Relatarei coisas surpreendentes e fantásticas, de tudo, por tudo e em tudo inexprimíveis.
Contarei meus segredos de dias inexpressívos e de frias noites com gosto de morte. Quando então esvaziar a caneta das lágrimas, quebra-la-ei, pois que é feita de barro e para o barro, voltará.
Tragam-me então uma caneta de aço. Eu a cravarei profundamente no meu coração e extrairei dele o sangue, o lodo e o fel que servir-me-ão de tinta para escrever com letras de fogo num idioma inacessível uma outra poesia cheia de mesóclises esnobes, subterfúgios gramaticais, excessões morais, suicídios vocacionais e dores superlativas: Tudo isso que dá forma ao manto que cobre a minha alma hipócrita e vagabunda.
(Existem espectros que assombram meu coração, que arrastam suas correntes entre as aurículas sangrentas enquanto outros gemem nos ventrículos ineficientes, espalhando no fluxo e no refluxo desse sangue ruim, o desencanto que me assola e esse desespero que me condena).
Quero uma resma de papel para escrever, pois faz frio. A noite desce e eu estou só. Miseravelmente só.
(Mane nobiscum Domine, advesperacit!)
Marcos Paiva, Londres, 11/09/2007