como você pôde?

senti o calor se aproximar da minha pele, até tocá-la. há tanto tempo não sentia minha garganta tão quente pulsando por esse encontro, há muito tempo não nos beijávamos. as cicatrizes decoram meu corpo como se contassem toda minha história. ardeu no primeiro instante, como imaginava, depois, não mais. dessa vez não foi num quarto, o céu acompanhou meu peito pular pra fora de mim me implorando pra não deixá-lo parar, por um instante, hesitei. senti o calor se aproximar como se sentisse tanto frio que só isso pudesse me salvar. três cigarros de uma vez só. parte queimou por dentro, parte queimou por fora. ninguém pode apagar. mais uma cicatriz desse doze de novembro se formará, mas essa não chega perto das que escondo atrás da tatuagem. nem em profundidade, nem em racionalidade. remédio controlado todas as manhãs, o psiquiatra disse que em alta dose não mata, me alertou antes que chegasse o dia de tentar. por minutos voltei aos quinze e escorreguei pela mesma porta até cair no chão, sóbria, infelizmente sóbria. insanamente sóbria. o calor esquentou a pele como se não fosse suficiente meus pulmões estraçalhar, apesar disso não chegar nem perto do quanto meu coração está em pedaços. cada perca de ar voltou a minha mente, como ela foi capaz de me quebrar? mãe, você me destruiu o suficiente por toda uma vida. como ela foi capaz de me quebrar? eu só queria sentir. só queria sentir. só queria sentir o bastante pra chorar, você destruiu isso também. como você pôde? como pôde me deixar sozinha naqueles dias escuros em que meus braços sangravam? como pôde não me ajudar a curá-los? como pode feri-los também? é madrugada de terça feira e os quinze estão de volta a memória. estão de volta tuas palavras duras que me atingiam como tiros e as feridas ainda estão abertas, só doem ao tocar. eu toquei a maldita ferida e a maldita música. deteriorei. os dias chuvosos pela cidade vagam pela minha mente agora, dias em que fugi de você. as drogas me salvaram por ora, por muitas horas, o alcool me ajudou a te esquecer, mas hoje o cigarro queimou enquanto me lembrava de você. madrugadas a fio a chorar depois de outra briga nossa, sozinha, embriagada, ouvindo sua respiração no quarto do lado. na frente do espelho minha maquiagem escorria junto com a dor. como você pôde? como você pôde me deixar sozinha com meus pesadelos que me assustavam a ponto de dormir em meio a moveis quebrados no soco? com a parede manchada de sangue e o lençol sujo, meu corpo jazia. dia após dia. você me batia tentando apagar da minha cara o que não gostava, sem entender que meus traços eram tão parecidos com os teus. teus xingamentos ecoavam como uma canção de ninar, todos os dias desmaiava depois da terceira garrafa, tentando amenizar. passaram-se anos, os mágicos quinze anos se foram. cheguei aos vinte e um, porém ainda vaga sobre minha pele todos aqueles anos de terror. sinto muito.

Carmen Tina
Enviado por Carmen Tina em 13/11/2018
Código do texto: T6501444
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