Vinte e três horas

Ficou parada à porta, observando os quatro buracos no azulejo do banheiro, onde antes havia um espelho. Mandou retirar logo que se mudou, não gostava de espelhos.

Ela não fugia. A dor, a solidão, a necessidade sempre a encontravam no mesmo lugar, em sua posição estóica de ser no mundo. Fugir da vida não estava mais nos seus planos. Aceitar o falso, as meias palavras, os "talvez", muito menos. Valente.

"A gente sempre se desfaz daquilo que mais ama,

seja em campo aberto ou numa emboscada.

Uns, com a leveza do carinho,

outros, com a dureza da palavra.

Os covardes destroem com um beijo.

Os valentes, destroem com a espada."

Paulo Coelho, pensava. Um livro que lera na adolescência, quando ainda acreditava no "para sempre" e no amor dos homens. Não fora feita para o amor. Não para o Eros que se dá com falsidades, mentiras e traições. Não; seu amor era philia. Eram os amigos de verdade, os que não a abandonavam nem "faziam a perdida". Seus amigos eram gays, homens casados e mães de família, garotos de programa. Amigos, sim, mesmo sendo diferentes da personalidade dela, tão formal. Amigos. Amigas. Falsos amores que se desfizessem no fogo depurador da verdade. Olhos nos olhos, mãos dadas, corações unidos, era este o seu lema. Não podia dizer que não estava sofrendo um pouco porque ele se fora. Enrolada na toalha, vários pensamentos antes de entrar no banho. Um cigarro, um inseto na parede, o que precisava ser feito no dia seguinte. E seus olhos encontraram os buracos onde antes havia um espelho. Um espelho velho, feio e deteriorado. Daqueles que se abrem para um compartimento de cosméticos. Amarelado. Desbotado. Por um momento quase pôde ver o rosto dele refletido, os olhos verdes sob os óculos redondos, a barba espessa. O torso magro e branco como um fantasma inglês. Era isso que ele tinha se tornado, um fantasma. Uma lembrança que necessitava de ser esquecida. Dissera-lhe que o amava. Sim, ela o amava. Mas ele não era forte, não o suficiente para acolher o amor e encarar a verdade. Ele também sofrera por um amor ingrato. Agora vivia ali, encostado no casamento que não era casamento, na mulher que gostava dele e era o seu porto seguro. "Um remediado", como ele mesmo dizia em seu desconhecimento de não haver portos seguros. Voltaria um dia? Era provável que não. A Destruidora tinha sido implacável. Ela sempre aparecia quando via esses homens machucarem sua pupila. E ele, a amava?

"Isso não existe", pensou ela antes de entrar no banho. Fantasia. O que há de verdade é acordar cedo, ônibus lotado, trabalho, contas e esgotamento mental. Depois o descanso semanal e começar tudo de novo. Sim, isso existe.

Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 20/11/2018
Reeditado em 20/11/2018
Código do texto: T6507183
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