Domingo
Domingos. Detesto-os. E com o hábito de acordar cedo para trabalhar, tenho mais tempo para não gostar dos domingos. Não tem trabalho. Não tem novela. Celular fica esquecido dentro da bolsa. Não fosse a utilidade pontual, eu o faria em pedaços.
O que me salva é o Loan vir de tarde para as nossas caminhadas. Loan é um grande professor de filosofia da rede pública. Fomos da mesma turma da UFC e a amizade perdurou para além do universo acadêmico. Ele ensina filosofia. Eu vivo filosofia. Uma estóica irremediável.

Pois muito que bem. Ele chegou de férias do Recife (tua terra, Darta), e tome conversa, romancistas, poetas, resistência, as desigualdades sociais gritantes da Veneza brasileira. Não que aqui não tenhamos, imagine, favela em plena Aldeota, miséria com vista para o Mar. Seguimos pela Godofredo Maciel colorida pelos ipês, passamos pela Casa Encantada, avisto um gato coçando as pulgas em meio a um turbilhão de flores róseas. Na lagoa da Maraponga, bêbados epicuristas tomam cachaça e comem peixe frito entre um mergulho e outro. As árvores antigas, belas e selvagens, de galhos retorcidos e troncos grossos e enegrecidos. "A construção do outro lado foi embargada". Bem-feito. Decerto que os dejetos iriam todos para dentro da lagoa mas nada que o dinheiro não resolva. Um velho deitado em cima do bueiro me lembrou os cínicos da Grécia antiga. O "teste da farinha" a que submeteram Oscar Wilde. Não sabia. Ele colhe flores e eu recito Fernando Pessoa, "colhe as flores, gosta delas, esquece", "quem é?" Poema do Menino Jesus. Ele ri. "Ele ri dos reis e dos que não são reis, e tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios". Olho para ele mas vejo através dele. Aquela noite, aqueles olhos, aquela boca de pitanga madura tão perto da minha. "Você vai se machucar, você vai perder". Eu sei. Não fosse assim não seria eu. É bom ter um amigo. "Você gosta de caminhar. É Iracema, que vinha da bica do Ipu se banhar na lagoa da Parangaba". Realidade e fantasia se confundem neste fim de tarde. Desertificação das relações humanas. Lojas que se erguem da noite para o dia. "Uma farmácia de três andares". Ora, veja. A perda das referências nos faz adoecer e, em consequência, nos automedicar. "Você pensa pela lógica do capitalismo". Eu sei. "Seu discurso é machista". Também sei. Orumilá me disse que meu espírito veio de uma linhagem de homens. Isso explica muita coisa. Minha altura. meu estilo. Meu silêncio.

Agora estou sentada na calçada escrevendo à luz do poste. Muitos carros na Benjamim Brasil. Dois homens parecem discutir no canteiro e em seguida apertam as mãos. Me tranquilizo. Sentar-se na calçada é coisa rara em Fortaleza. Violência. Roubo. Morte. Tudo é vida, inclusive a morte. Meus cigarros acabaram. "Quando as coisas não podem ser piores, você fica sem cigarros", Cate Blanchett em "Carol". Agora só amanhã.
Agora só amanhã.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 09/12/2018
Reeditado em 01/07/2019
Código do texto: T6523023
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