KNUD, O VIKING

Para quem não sabe, chamamos de "trecho" às obras que se espalham pelo Brasil a fora e as pessoas que vivem mudando de obra em obra são os "trecheiros". ao fim duns vinte ou trinta anos a gente possui uma extensa coleção de personagens únicos, verdadeiros amigos de curta duração, mas amigos. Ainda volto a falar disso. Essa é uma figura que conheci, da qual guardo boas lembranças.

UMA BARRAGEM EM IGUAPE- 5ª PARTE

KNUD, O VIKING

A Christiane Nielsen, construtora dinamarquesa que operou no Brasil desde 1930 até associar-se com a Carioca Engenharia, já nos anos 2000, iniciou a construção de uma carreira para embarcações à margem direita do Valo Grande. Montou seu canteiro de obras próximo ao nosso e deu início aos trabalhos. Como é normal acontecer sempre que se inicia a implantação de uma obra, é necessário tomar o maior número de informações possível sobre a cidade, fornecedores, disponibilidade de mão de obra, restaurantes, e demais recursos disponíveis. Procura-se minimizar o impacto sobre a população local ao mesmo tempo que se busca utilizar os recursos oferecidos de modo impulsionar o comércio e contratar o maior número de moradores possível. Isso tudo contribui para uma boa integração entre construtora e comunidade.

Como nossa empresa já havia se fixado em Iguape, fui várias vezes procurado pelo pessoal da Christiane Nielsen em busca de informações sobre a cidade. O engenheiro chefe da obra era um norueguês, de nome Knud, especializado em obras portuárias. Era um homem alto, cabelos e sobrancelhas loiros quase branco, vermelhão, falava um português com forte sotaque nórdico, muito conversador. Aos poucos fomos aumentando nosso contato e logo nos encontrávamos pelos botecos da cidade. Iguape era uma cidade tranquila, á noite tinha dois ou três bares que permaneciam abertos após as nove da noite. Para nós, forasteiros e solitários, não haviam muitas opções além de sentar e conversar com amigos em volta de uma mesa de cerveja após o jantar. Knud revelou-se um excelente contador de histórias. Era bem mais velho que eu, trabalhava há mais de 30 anos na empresa em vários países do mundo. Sempre de bermuda, camisa aberta e chinelão de couro. Como gosto muito de ouvir experiências dos outros e já possuía muito o que contar, em diversas ocasiões conversamos por horas.

Knud possuía uma ilha lá pelos lados de Mangaratiba, pois fazia anos que trabalhava no Brasil e comprara os direitos de posse da terra. Planejava aposentar-se e morar em sua ilha.

Executara obras na Arábia Saudita e teve que seguir os rígidos preceitos do país em relação à bebida e outros costumes ocidentais. Lá, era um infiel.

Construiu a parte marítima da base americana das ilhas Marianas, que anos depois serviriam de local do abastecimento dos aviões ingleses na Guerra das Ilhas Malvinas. Já estava na obra há mais de ano quando mudou o oficial americano que fiscalizava a obra. Assim que chegou, o novo fiscal pegou uma marreta e pôs-se a desmanchar a armação de um tetrápode para construção do molhe da pista de pouso. Knud imediatamente pegou o sujeito pela gola da farda e o arremessou ao chão. O orgulhoso americano chamou a guarda e Knud ficou detido. O alto comando da base convocou o presidente da Christiane Nielsen e, dia seguinte, pousava um avião da empresa trazendo o dono da mesma. O comandante da base exigia a retirada imediata de Knud da obra e substituição por outro profissional, pois havia urgência na conclusão dos serviços. Tranquilamente, o presidente comunicou que o único profissional especialista em molhes era Knud e, nesse caso, a empresa teria de pedir rescisão de contrato. Os três coronéis responsáveis pela base engoliram em seco e reviram suas exigências. Resultado: o oficial foi removido e Knud concluiu o contrato sem problemas.

À noite ficávamos conversando no bar do Flávio Canário, um baiano que adotara Iguape como sua cidade. Knud, como muitos nórdicos bebia bem. Chegava, pedia um suco de laranja e, em copo Maracanã, misturava com meio litro de vodca. Invariavelmente tomava duas ou três dessa mistura, levantava se apoiando nas paredes, e se arrastava até sua casa, que ficava a uns 20 metros do bar. Lembro que ia falando ao sair, com a voz muito pastosa: “-Eu beber socialmente!”, sempre se poiando com as duas mãos na parede. Flávio, atrás do balcão, comentava com seu sotaque baiano: ”-Vai beber socialmente assim na puta que o pariu!”.

Santos 20 de dezembro de 2018.

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 20/12/2018
Reeditado em 11/09/2021
Código do texto: T6531999
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