MORTE ANTECIPADA

O fim talhado às figuras notáveis envolve roteiros comparados as dispendiosas produções de Hollywood. À decretação de luto antecedem discursos emotivos, sucedem homenagens que irão se perdurar no tempo.

Reverenciar à vida implica em respeitar o seu fim. Nada mais justo. Entretanto, como o termo final da existência harmoniza os diferentes, essa apologia deveria ser observada independente de méritos ou limites pessoais.

Não é o que se observa, pois com frequência se alonga a memória de alguns, enquanto a morte de outros se faz antecipada.

Para os que são invisíveis, o fim não está necessariamente atrelado a um diagnóstico médico. Ele também pode, em “avant-première”, manifestar-se através meios sutis e demasiado cruéis.

Aos desprovidos da sorte, o manifesto final equivale a uma execução silenciosa e continuada. Ninguém lê suas cartas, suas vozes não são ouvidas e nem as indagações têm respostas. Seus pleitos são ignorados em repartições públicas ou instituições privadas. Faltam hospitais e profissionais para tratar seus males. Após essa grave realidade, o soterramento é categórico, formal e necessário. A indiferença, por derradeiro, será eterna companheira de multidões desde sempre esquecidas.

Em nosso meio, não se perde tempo com soldados mortos. Todos os olhos se vão para as medalhas dos marechais e para os perfis dos gerenciadores dos meios produtivos, que são privilegiados com estátuas e homenagens imorredouras.

Embora se viva uma realidade seletiva, deuses e servos das engenharias sociais estão submetidos a uma impiedosa transitoriedade. O paciencioso esquecimento, alheio aos prêmios e as isenções materiais, mestre da humildade, ergue um templo invisível que a todos abriga indistintamente.

No que se refere ao enfrentamento da transição, torna-se digna de registro a cerimônia prevista na Religião Mosaica, que trata de igualar ricos e pobres na morada final. A água que um dia recepcionou o recém-nascido, também vai purificar o corpo por ocasião do passamento. Segue-se uma mortalha branca, um caixão simples e um enterro rápido e sem requintes, para que a alma logo descanse. Nos olhos e na boca do morto ficam pedras que simbolicamente impedem o questionamento sobre a morte e o encontro extemporâneo com o Eterno.

Mas, voltando-se ao tema inicial, bom seria que, para abrigar a dignidade humana, a gerência dos interesses públicos lograsse restituir, aos que nunca são notados, a vida que de uma maneira cruel lhes é confiscada antes da morte. Em muitos casos, os favorecidos pelo bronze das homenagens por certo não teriam reconhecimento, não fosse o concurso anônimo de multidões invisíveis.