O Dia Que Não Foi

Era um dia como outro qualquer, sem nada que lhe conferisse especial deferência nem por mérito, nem por hora corrida.

Mas era “um dia”, aquele dia em que o sujeito levanta ainda meio magoado por perder o berço do sono protetor, livre de todas as preocupações, de toda ansiedade, medos e esperanças; quando não se quer espreguiçar, e, de todas as formas busca a certeza de que se não bocejar, se não se mexer, não precisamos acordar.

Deixa-se o calor das cobertas, o aconchego dos travesseiros, a cama feita, e desfeita, com a nossa recente presença, até então imortal e intocável, a nossa marca no mundo onde nada nem ninguém é maior ou menor que nossos sonhos, sejam assustadores ou não, para voltar nossa atenção às indispensáveis “abluções matinais”, nome pomposo para descrever a penosa higiene da manhã.

Assim de chinelo arrastado, roupão mal ajambrado, cabelos dignos de um genuíno habitante da perdida da idade da pedra, perfila solenemente a procissão do desjejum: ferver água, passar café, passar qualquer coisa no pão, vestir, meia, sapato, roupa, pentear, perfumar, pegar a pasta que esta não sei onde, o documento imprescindível – porque de dia tudo é imprescindível – a chave da casa, do carro, conferir a carteira, e pronto: começou aquele dia onde minuto a minuto, esquecemos que ele é “o dia”, e não qualquer outro.

Chega-se ao trabalho, faz-se cara de pastel, sorri, diz bom dia, pergunta, responde, corre, volta, atende telefone, sobe escada, fala com chefe, foge do chefe, manda dizer que não esta, toma um cafezinho, finge que almoça um sanduba, feito de qualquer coisa entre o natureba e esse pega; volta toma mais um cafezinho, corre pro telefone, foge pro banco, entra na fila, xinga, implora para qualquer santo, reclama do mesmo, engrossa o couro dos descontentes, reclama do caixa que fala demais, paga conta, fica pra lá de “p” da vida quando descobre, que da conta pagou o cartão de crédito, e do cartão não sobrou nem o crédito; volta pro trabalho, olha pro relógio, mais um café, telefone, secretaria, chefe, fofoca da mulher do chefe, do chefe, do sub-chefe, e pimba: o expediente acabou.

E agora? Ainda tem mais dia: pega o carro, briga para sair da garagem, engarrafamento, buzina, fechada.

Ah! Mas tem o “happy hour”, luta por uma vaga para estacionar perto bar, entra encontra aquele povo todo de copo na mão, mão engordurada de batatinha frita, e joga conversa fora, fala do futebol, da novela, do trabalho, do corpo da fulana, do bonitão que tomou o espaço e assim vai.

E o dia?

O dia acabou. A noite propriamente dita chegou, as ruas silenciaram, a pressa acabou, mas não era esse o dia que lutei tanto para não entrar?

Por que tanto me açoitou o dia que foi como tantos, e será como tantos outros?

Na verdade não foi um dia, pois de todo ele em nenhum minuto pensei sobre ele, suas possibilidades, sua vontade, o desejo, a esperança, seu perfume, sua perplexidade.

Deixei de ser o timoneiro, virei pedra de rio.

Tudo ficou preso no cortadinho do “sempre assim”, do amanhã - nem sequer do talvez.

Nem por isso o rio me poupou de seu curso.

Não se falou, não se escutou, de fato: não se acordou.