MIRANDO O MAR

Meu pai tinha apenas 3 anos e minha avó fazia pão caseiro em uma casa de madeira na beira de um mato na localidade de Cruz de Pedra, subdistrito de Rosário do Sul, pequena cidade na fronteira entre Brasil e Uruguai, bem longe do barulho do mar. Era 1943, e no rádio o locutor falava das atrocidades da 2ª guerra mundial. A Europa literalmente pegava fogo, países eram invadidos pelos alemães que construíam campos de concentração e matavam seus adversários com pelotões de fuzilamento e câmaras de gás letal. Milhões de pessoas eram executadas por vários motivos. Na Alemanha, na Polônia e outros países, eram realizadas as atrocidades, onde centenas de milhares de pessoas eram aprisionadas, depiladas, torturadas e assassinadas barbaramente, desumanamente. E meu pai ali, menino, começando a dar seus primeiros passos e a articular suas primeiras palavras, num distante lugar de paz, bebendo leite puro tirado das vacas todas às manhãs pela minha vó Diva, abraçando meu avô Roca quando este apeava de seu cavalo depois de percorrer os campos para conferir seu gado e suas ovelhas, que não eram muitos.

Naquele ano de 1943, no campo de concentração de Majdanek, na Polônia invadida pelos nazistas alemães, a chacina continuava. Neste local, entre 1941 e 1944, em apenas 33 meses de funcionamento, 360 mil humanos foram assassinados pelos nazistas. Além deste campo de execuções, funcionavam na Polônia os campos de Treblinka e Sobibor, para prender e matar somente judeus. O campo de Majdanek, situado na periferia da cidade polonesa de Lublin, era um dos mais tenebrosos desta matança em massa na Europa, só perdendo para o famoso campo de Auschwitz, na Alemanha, onde milhões de pessoas foram aprisionadas e assassinadas pelo regime sanguinário imposto por Adolf Hitler e seus generais SS.

Enquanto meu pai vivia seus primeiros anos de paz no sul da América do Sul, os presos e condenados à morte por serem judeus, testemunhas de Jeová, homossexuais, presos políticos, comunistas, negros, desempregados e avessos ao trabalho, eram mortos nestes campos de concentração. Homens, mulheres e crianças de mais de cinquenta nacionalidades, entre russos, poloneses, franceses, tchecos, dinamarqueses, etc, eram vítimas da intolerância e barbárie da guerra. Em 1942 foram fuziladas 6 mil pessoas em apenas 48 horas. Em 25 de julho de 1943, quando meu pai tinha completado seus 3 anos de idade, centenas de crianças foram assassinadas nas sete câmaras de gás instaladas no campo de Majdanek. No dia 03 de novembro do mesmo ano houve a matança de 18.400 judeus, fuzilados com armas automáticas, sendo esta a maior matança da história deste campo maldito. Enquanto isso, minha avó arrumava a casa humilde de madeira, preparava a comida para o esposo e filhos, e cevava um mate doce na beira do fogão à lenha. Na sua ingenuidade não podia imaginar que o ser humano pudesse ter tanta maldade no coração.

E assim seguiu a guerra até seu final em 1945, com mais de 50 milhões de mortos, países destroçados, lavouras e indústrias arrasadas, cidades bombardeadas, economias destruídas, bombas atômicas testadas sobre as cabeças de mais de 300 mil pessoas que desapareceram em minutos no Japão. Até nossos compatriotas brasileiros foram para esta guerra maldita, lutar contra os fascistas na Itália e os que voltaram vivos ganharam honras militares e reconhecimentos como heróis.

Meu pai não tinha conhecimento desses fatos, era um menino, brincando no quintal. Meus avós, humildes campesinos, só se preocupavam com suas pequenas lavouras de mandioca, milho, melancia, abóbora, batatas, hortaliças, suas poucas vacas e ovelhas no pasto da pequena propriedade rural, com seus bois e cavalos que eram o transporte familiar na época da grande guerra.

Na Europa trafegavam os carros de guerra sobre os corpos mutilados dos soldados, no interior do sul do Brasil trafegavam as carretas puxadas por bois que levavam alimentos e carvão para as pequenas cidades.

Foi neste momento que muitas indústrias de alimentos foram impulsionadas para enlatar carnes e vegetais que foram enviados urgentemente em toneladas nos navios para matar a fome do povo europeu. Meu pai cresceu assistindo o movimento de operários da Companhia Swift Armour que levou o desenvolvimento e a cultura industrial para sua pequena cidade encravada no meio da pampa gaúcha, bem distante do barulho do mar.

A humanidade tinha se livrado do sonho louco e racista do tirano Hitler e seus aliados Mussolini, líder fascista da Itália, e do insano império Japonês. O Exército Vermelho dos combativos comunistas russos invadiu Berlim, a capita da Alemanha, e pôs fim aos delírios dos nazistas. Por outro lado os norteamericanos invadiram o velho continente com seu poderio militar e libertaram os países da Europa ocidental que tinham sido dominados pelos nazistas. Enfim a paz, depois de seis anos de atrocidades e genocídios. Porém o planeta estava definitivamente dividido entre dois sistemas de economia e governança: de um lado os capitalistas, comandados pelo império norteamericano e seu maior aliado europeu, o Reino Unido (Inglaterra); e do outro lado os comunistas sob comando da União das Repúblicas Soviéticas, um império liderado pela Rússia.

Meu pai cresceu, se fez homem, encontrou minha mãe, eu e meus irmãos nascemos, meus avós morreram e os países continuaram aumentando seus contingentes de soldados, instalando suas bases militares em todos continentes. As guerras por mais poder, mais territórios, mais dinheiro, mais petróleo, mais escravos modernos assalariados, continuaram com focos regionais, porém tão sanguinárias, cruéis e insanas como aquela grande guerra dos anos 40 do século XX, quando meu pai e minha mãe curtiam inocentemente suas brincadeiras infantis.

Hoje aqui, no século XXI, mirando o mar azul de Porto Seguro, no sul da Bahia, onde começou o Brasil novo, de cultura europeia-portuguesa-francesa-inglesa-holandesa, e onde acabou a nação dos nativos que viviam no que chamavam de Pindorama -terra das palmeiras- pergunto a mim mesmo: até quando haverá tanta matança entre humanos? Tantos conflitos, homicídios, latrocínios e vinganças ?

Talvez meus netos, hoje crianças, vivendo neste momento bem longe deste barulho do mar, um dia encontrem esta resposta, e o mundo conquiste a verdadeira paz tão desejada e tão pouco praticada.

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 10/03/2019
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