O cara chato

Chateação. O que torna alguém chato? Como definir alguém incoveniente? Essa definição é, de alguma forma, pessoal? Acho que o que pode ser chato para mim pode não ser chato para você. Logo, pode haver algum grau de subjetividade na chatura... De qualquer forma, chato no momento é o sujeito que vai no meu carro. Aliás, que vai comigo na carona. Deixe-me explicar: não sou taxista, sequer tenho habilitação, caro leitor. Sou caroneiro. O ônibus é o dobro do preço, a carona me deixa em casa. O caro de quem vos falo veio do aeroporto. Quando cheguei ao carro, ele lá já estava. Dei meu bom dia. Ficou calado. Tudo bem, ele tem seu direito de ficar calado. Talvez tenha tido uma noite difícil. Começou a falar com o motorista, um policial. Um policial estereotípico, um daqueles tiras de filme americano dos anos 50: sujeito de cara quadrada, sobrancelha grossa, queixo furado, óculos escuros estilo aviador. O carona começou a falar dos restaurantes que fora, das indicações de pratos que tem, do carpaccio deliciosíssimo de um restaurante no último andar de um hotel na zona norte da cidade. Falou do carnaval, fez comparações entre os blocos de rua e os carnavais pagos. Nos clubes e associações, havia jazz e cantores famosos eram as atrações da noite. Gente bonita, mulheres loiras perfumadas e bem vestidas. Apesar de um pouco pedante, não tinha nada a reclamar do companheiro de carona. A sua voz era alta, estridente. Mas voz não é algo que se possa mudar, não era sua culpa. Também não era sua a culpa da noite mal dormida que tive. Não era sua a culpa do fato de eu ter sonhado novamente com o meu sofrível emprego. A situação ficava a cada dia mais difícil. O auge, porém, foi quando o sujeito começou a falar de política. Assunto indigesto, principalmente nos tempos correntes. Falava com fervor da imoralidade da oposição, do assistencialismo irresponsável dos governos anteriores, dos caminhos e decisões que deveriam ser tomadas nos campos econômico e diplomático do país. O policial ruminava onomatopéias, embora não precisasse, apenas aquele rosto quadrado emanava com clareza todas as opiniões. O sujeito continuou o seu monólogo. Fazia agora quase um ensaio sobre a situação do preço do café no Estado Novo em comparação com a cotação atual. Estou aborrecido, através do vidro do banco de trás vejo o céu com nuvens cinza, estou meio enjoado por conta do balanço do carro, estou com sono. Talvez o chato seja eu. Talvez o sujeito esteja apenas mostrando o quão limitado é o meu repertório e o quão fracas são as minhas opiniões. Ao cabo de alguns minutos, porém, não me contive, adormeci.