Paraty - a festa literária

Saio do Rio às 9h30min de uma quarta-feira, 27 de junho de 2009. Depois de um percurso de ônibus de quase quatro horas, chego finalmente a Paraty. Deixo os pertences na pousada (uma das quatrocentas pousadas que se aglomeram no município), como um peixe com camarões em um dos quiosques da beira da praia e enveredo pelo caminho que me leva à FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty, evento que se realiza anualmente na cidade desde 2003). Percorro pouco mais de um quilômetro cortado na mata, que se estende exuberante dos dois lados da estrada. Após uma subida que, para uma habitante dos pampas, parece um tanto íngreme, sobrevém a descida: eis-me no palco onde, durante cinco dias, se desenrolará a FLIP. Longas filas pela frente: descubro que a mais curta destina-se aos que buscam os ingressos já comprados (via Internet ou telefone). Na outra, agrupam-se os que tentam conseguir vaga para as mesas que ainda não lotaram.

Se nem todas as informações são precisas, por parte do pessoal que assessora o evento, logo vou descobrir que as atividades foram bem organizadas. São 18 mesas que se sucedem de quinta de manhã a domingo à tarde, obedecendo aos horários preestabelecidos. Além disso, há uma programação paralela na Casa da Cultura, com vários encontros dedicados às relações Brasil/França. Para as crianças, existe a Flipinha; para os adolescentes, a FLIPZona. Sem falar em atividades culturais que compõem a OFF Flip. Toda a comunidade parece envolvida, de alguma forma, no grande acontecimento. Dou-me conta de que, infelizmente, não vou poder atender a tudo. E o passeio de escuna, que me aconselham os nativos, termina dançando.

A abertura oficial da FLIP é feita por Davi Arrigucci Jr., um dos mais conceituados críticos literários do país. Professor aposentado da USP, autor de vários livros de ensaios, ficcionista, Davi (como é conhecido por seus alunos) dedicou a sua conferência a Manuel Bandeira – patrono da festa -, cuja poesia havia analisado em "Humildade, paixão e morte" (1990) e em "O cacto e as ruínas" (1997). Discorreu sobre o alumbramento de Bandeira, ou seja, um sentimento poético baseado no desvendar da rua, das coisas humildes. Essa emoção poética, segundo Arrigucci, liga-se à ida de Bandeira para a Lapa, no Rio de Janeiro. Após a conferência de abertura, Adriana Calcanhotto apresentou-se na Tenda do Telão, espaço em que muitos assistiam às mesas, já que não era fácil conseguir um lugar na Tenda dos Autores. Entre uma e outra tenda, a romântica pontezinha que conheceu um movimento ininterrupto durante os dias da FLIP.

Na quinta-feira, ainda embalados pela bela performance de Adriana Calcanhotto, começamos a freqüentar as mesas. E assim no decorrer dos dias seguintes, numa avalanche de debates e depoimentos que, de maneira geral, se mostraram enriquecedores. Autores de nove países versaram sobre os mais diferentes temas, leram trechos de suas obras, trocaram experiências, interagiram com a platéia. No âmbito de uma breve crônica, não seria possível dar conta de tudo que vivenciei, vi, ouvi durante a breve permanência em Paraty. E do que perdi, como o concerto de Olívia e Francis Hime, para o qual não consegui lugar...

Entre os destaques da FLIP, eu poderia citar (por ordem de apresentação):

Tatiana Salem Levy, uma jovem autora que venceu, em 2007, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Estreante e, no ano seguinte, foi finalista do Jabuti com o romance "A chave de casa", em que mescla elementos ficcionais e de memória;

Ma Jian e Xinran, chineses exilados na Inglaterra, que obtiveram grande sucesso com a mesa "A China no Divã". Para me penitenciar por ter perdido a sua palestra (estava na Casa da Cultura, ouvindo David Foenkinos, um francês que me lembrou, pela aparência e pelo senso de humor, a figura de Woody Allen), comprei o livro "Les funérailles célestes", da escritora Xinran. Um livro marcante, baseado em fatos verídicos, que põe em questão as relações da China com o então soberano Tibet;

Richard Dawkins, o biólogo britânico autor de "Deus, um delírio". Em uma conversa franca com Silio Boccanera, o autor revelou-se um darwinista convicto (embora não darwinista social). Dawkins, que fez muita sensação na FLIP, é considerado o principal evolucionista em atividade;

Atik Rahimi, escritor afegão que, nos anos 80, fugiu da guerra civil em seu país. Radicado na França, Atik venceu o Goncourt, no ano passado, com seu primeiro livro escrito em francês: "Syngué-sabour: Pedra-de-paciência";

Chico Buarque e Milton Hatoum, na concorrida mesa intitulada "Sequências brasileiras". Ambos cotejaram seus últimos livros ("Leite derramado" e "Órfãos do Eldorado", respectivamente), em que apresentam, cada um a seu modo, uma visão crítica do Brasil;

Antonio Lobo Antunes, romancista muito conceituado em Portugal. À frente da mesa "Escrever é preciso", monopolizou a platéia com sua presença forte, suas respostas inteligentes e por vezes irônicas. Neto de brasileiro, afirmou ter começado a amar a literatura através dos versos de nossos poetas.

Eis apenas alguns destaques de um encontro que nos fez conhecer nomes da estatura de um Mario Bellatin, de um Gay Talese, das francesas Sophie Calle e Catherine Millet, ambas inseridas em uma vertente (auto-ficção) que mescla vida privada e vida literária. Gostaria também de mencionar o cálido poeta Eucanaã Ferraz e a pelotense M. Angélica Freitas, que lindamente evocaram Bandeira.

No domingo à tarde, deixei já com saudade o ambiente tranquilo de Paraty, suas ruas de pedras, seu belo casario colonial, aquele centro histórico onde me havia sentido bem acolhida. Na lembrança, levava o exemplo de uma festa que poderia ser imitada por outras comunidades (e parece que várias cidades dos arredores já estão montando eventos do gênero). Com dedicação e competência, paulatinamente, é possível chegar lá, organizando uma programação que divulgue valores, que os traga para junto da população, que intercambie cultura. Que seja suficientemente instigante. (Por aqui, temos o exemplo de Passo Fundo, que realizará em breve a sua Jornada Nacional de Literatura.)

Pelo que me disseram, Paraty já começa a planejar a sua oitava festa literária, que acontecerá em meados de 2010. E promete...

OBSERVAÇÃO: Faço o relançamento desse texto, que escrevi ao retornar da minha primeira FLIP, no momento em que me preparo para a FLIP 2019, dez anos depois. Que seja tão boa quanto a primeira!