E no entanto é preciso cantar.

Assim cantava o nosso doce Vinícius de Moraes na Marcha da Quarta feira de cinzas, nos anos de chumbo: "E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade..."

Diante da monstruosidade do cotidiano, tenho tentado com insistência não cair em total depressão. Está complicado, confesso. Nunca deixei de ter militância, mas nada tão ostensivo, nada de falar alto e de enfrentamentos. Sempre tentei dialogar, argumentar com fundamentação histórica, mas nada disso tem surtido efeito nessa terra que virou a chacota do mundo. País de bandeira despedaçada, de honra perdida, de total falta de vergonha na cara. Bem dizia Quintino Bocaiúva: "a Constituição deveria constar de apenas um artigo: que todos os brasileiros tenham vergonha na cara". Quantas ilusões perdidas!

Sem direção, de olhar sem brilho e sem conseguir forjar uma única piada, vou andando, deixando a vida seguir.

Resolvi entrar num pequeno grupo para cantar. Cantar para aqueles velhinhos que têm nos asilos o seu refúgio final, o lugar dos seus últimos suspiros, das lembranças, dos sonhos que, um dia, acreditaram se tornariam realidade.

Hoje, o nosso primeiro ensaio. No meio de tudo, eu me lembrava das grandes desgraças que somos obrigados a conviver e a ouvir idiotas de diversas classificações a elogiar as desditas, a abominar a honra, a achincalhar a lisura de caráter que teima em não morrer em muitos corações dignos do nome e da sua condição.

E eu tentava reagir. Sim, vamos cantar. Levar um pouco de brilho no olhar daqueles que ajudaram a construir a nossa história, hoje lavada pela acidez de uma ganância infinita. Antes, de um recalque infinito e, parece, eterno.

Vamos cantar e olhar para a vida que foi e que pouco tem sido.

Aplaudir uma luta feroz para se manter no mundo.

Apesar de tudo, de toda a barbárie, insânia, demência fecunda e ímpar que assola o meu país, é preciso cantar e alegrar a cidade.