Ônibus lotado

Dizem que isso começou ainda no tempo dos bondes. Um dia um sujeito entrou no bonde e viu que todos os lugares já estavam ocupados. Ele podia sair e esperar por outro bonde, mas virou-se para o motorneiro e disse “nem dá nada, eu fico em pé”. Ao motorneiro isso pouco importava, desde que a passagem fosse paga, e então a viagem prosseguiu. Assim teriam começado os nossos problemas com o transporte público, porque de repente passou a ser aceitável que as pessoas viajassem em pé mesmo. Hoje a situação chegou a tal ponto que todo mundo acharia muito engraçado se alguém reivindicasse que cada passageiro no ônibus tem o direito de sentar.

Agora, só viajamos em pé. A verdadeira elite é composta por aqueles que conseguem um lugar para se sentar no ônibus. Os mais intensos conflitos de classe ocorrem dentro do transporte público. Marx chegaria a muitas conclusões notáveis caso tivesse a oportunidade de ser esmagado dentro de um ônibus lotado, enquanto outros, sentados, fazem de conta que não há nenhum sofrimento ao seu redor. Ah, o ódio com que olhamos para eles e com que olhamos para o nosso irmão de infortúnio que nos empurra e nos encoxa além do que seria socialmente aceitável. Ali dentro, muitas leis da física já foram quebradas.

Felizmente, as dignas empresas proprietárias dos ônibus estão cientes do grave problema que essa falta de espaço provoca para o trabalhador brasileiro e adotaram uma medida largamente eficaz, ou seja, a diminuição do número de bancos. Ora, o que é um banco senão um desperdício de espaço? Um banco só é capaz de comportar uma pessoa, ao passo que, se o tirarmos, no mínimo três pessoas ocuparão o mesmo lugar, e três pessoas são três passagens. Já há também um número maior de ferros para se agarrar, embora ainda não haja um para cada passageiro, mas, claro, sabemos que não se pode querer tudo.

Existe um “princípio da dignidade da pessoa humana”. Está na Constituição e é muito bonito, o problema é que não abrange o interior dos ônibus. Ali ele é desrespeitado todos os dias da forma mais vergonhosa. Dentro do ônibus ninguém é digno e ninguém pode estar certo de ser pessoa humana. Ali se perde a humanidade e ali se torna animalesco. O homem nasce bom, o transporte público o corrompe (Rousseau). Nos ônibus, as pessoas são tratadas de forma que não aceitariam em nenhum outro lugar. Por muito menos se concede indenizações por aí. Mas já ninguém espera que algum dia isso mude.

Uma reportagem na TV, a cada três ou quatro meses. O repórter entra no ônibus lotado e constata que está lotado mesmo, não é invenção desse povo que não anda de Uber. Ouve uns passageiros, quer as declarações que mais denotem heroísmo. Porque o passageiro é, antes de tudo, um forte. Ao final, lê-se uma nota da prefeitura dizendo que já há estudos sendo feitos para implantar melhorias. Fim. A TV dá-se por satisfeita, fez a sua parte. O repórter vai embora de carro. No dia seguinte, o ônibus está tão lotado quanto sempre esteve, e ainda estará assim no dia que a TV voltar para fazer uma nova reportagem.

O político de esquerda e o político de direita são eleitos. O ônibus continua lotado. O passageiro briga para conseguir entrar, briga para conseguir sair e briga para defender o político de esquerda e o político de direita que não andam de ônibus e nem prometem que farão alguma coisa, pois sabem que não vão. O passageiro só tem uma redenção: o carro. O passageiro quer colocar mais um carro no trânsito porque é intolerável andar de ônibus. São milhões de passageiros querendo colocar milhões de carros no trânsito. Um carro a mais não vai fazer a diferença, pensam milhões de passageiros. E assim as ruas vão ficando mais lotadas, mas, ao menos, todos sentam.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/07/2019
Reeditado em 26/07/2019
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