Crônicas Médicas - O atentado

Se você é daqueles que colocam médicos em um pedestal simplesmente pelo peso do diploma, esse texto foi escrito pensando em você. Caso você não seja um desses, aproveite a leitura.

O relógio sinalizava duas e trinta da tarde e o tédio se apossava de mim enquanto aguardava no corredor; havia uma hora que eu estava na ESF. Alguns colegas já corriam para cima e para baixo na loucura da triagem, chamando pacientes e iniciando os atendimentos. Outros se encaminhavam para a territorialização e, para a sorte deles, para visitas domiciliares. E eu? Bem, eu continuava esperando.

“Aguarde na sala do doutor”, disse-me uma das técnicas em enfermagem. “Ele logo chega”.

Assim, eu entrei e parei em frente à mesa. Os pés, agitados e ansiosos, batiam sistematicamente contra o chão e os olhos, atentos, percorriam a sala em busca de algo para me entreter. Ali parado, a cada abrir de porta, eu colocava a cabeça para fora do consultório e torcia para que fosse o médico chegando. Vez ou outra, caminhava até a recepção e voltava para a sala, frustrado com aquele atraso (em princípio, era assim que eu entendia aquela demora: um simples atraso).

Depois de mais alguns minutos, o Doutor entrou apressado no consultório, enquanto eu o cumprimentava: “Muito prazer! Sou Vitor, aluno da professora Sandra”.

“Opa, seja bem-vindo”, ele respondeu com seu tom extrovertido e, apontando para a cadeira atrás de sua mesa, pediu para que eu me sentasse. “Hoje, você fará o atendimento, preencherá os encaminhamentos e as receitas. Eu só dou o direcionamento e assino o que for preciso. Questões legais, você sabe, né?”

Dessa forma, do outro lado da sala, ele me dizia o que fazer, enquanto eu, em frente ao computador, seguia cada instrução e tentava decorar o passo-a-passo de todo o sistema. Percebi que, no fim das contas, até que não era tão complicado assim. Enfim, antes que chamássemos a primeira paciente, ele, em um monólogo quase emocionante, fez questão de me passar algumas dicas para a vida.

“Vão existir situações em seu dia-a-dia que pegarão você desprevenido, em que a resposta estará na ponta da língua, mas as palavras não lhe passarão do fundo da garganta. Nesse momento, você precisará improvisar: conversa, enrola, examina e tenta lembrar dos conteúdos da faculdade, da doença em si e dos possíveis tratamentos. Muitas vezes, o tempo vai passar, a consulta vai chegar ao fim e você ainda não vai ter encontrado sua resposta. O que fazer então? Bem, faz cara de paisagem, pede alguns exames de rotina e receita um remédio para a dor. Se for algo sério, o paciente vai voltar e você terá pensado na resposta. Se for algo simples, irá se resolver e tudo bem. Ele sairá feliz e satisfeito que você deu atenção a ele, sem nem saber que você nada fez”.

Dito isso, ele se retirou e chamou a primeira paciente daquela tarde, que aguardava há quase duas horas para ser atendida. Assim que entraram, ele me apresentou como médico daquela tarde e começamos a consulta em um tom descontraído, quase que uma conversa entre amigos. O mesmo aconteceu nas outras nove ou dez consultas daquele dia, com alguns casos interessantes e outros não tão atrativos.

No entanto, o foco desta crônica não está no momento da consulta nem em tudo o que eu aprendi naquelas horas de vivência, ainda que haja conteúdo para isso. Afinal, que aluno de terceiro semestre não gostaria de sentir na pele a adrenalina de atuar como médico, ainda que por algumas horas? Naquele dia, não posso negar, muito aprendi, mas também não posso deixar de chamar a atenção para alguns pequenos detalhes que vim a reparar somente dias depois.

Entre o uso do estetoscópio e um encaminhamento, sempre havia a prescrição de uma receita, cada qual indicando o uso de antibiótico. Não quero questionar a experiência de um profissional que há muito trabalha com isso, mas tenho claro para mim que todos somos passíveis ao erro. Então, por que não ele?

Ouvido inflamado e dor de garganta: amoxicilina. Caminhoneiro com um pouco de dor no corpo? Bem, é uma infecção se instalando: analgésico e amoxicilina. Acho que vi um vermelho na garganta; pode ser uma placa se formando. Amoxicilina!

Não vou mentir. Saí de lá exalando felicidade. Liguei para meus pais e contei como havia sido minha tarde, o quanto eu tinha aproveitado. Sequer me lembrava do tempo que ficara esperando até a chegada do Doutor. Eu me sentia leve e útil. Será que era assim que ele se sentia ao chegar em casa após um dia de serviço?

Contudo, como dizem por aí, tudo o que é bom dura pouco. Alguns dias depois, aliando estudo com palestras, dei-me conta de como o conhecimento pode, muitas vezes, causar grandes frustrações ao nos revelar uma realidade que se escondia atrás de nossa ignorância. Em um mundo que diz que tempo é dinheiro, eu percebia que tempo era mais que isso e o atraso do médico naquela tarde não passava de uma falta de respeito comigo, com os pacientes que o esperavam e, principalmente, com o juramento que fez ao se formar na faculdade.

Indo além, recordo-me bem daquele monólogo e do significado das palavras que deixaram sua boca. O que no momento me pareceu digno de aplausos, agora me enche de repulsa. De fato, foi um discurso para a vida. Tenho nele um exemplo do que não fazer. Pode ser que me leve ao sucesso profissional, mas sei que, em troca, perderei toda a dignidade que busco construir ao longo dos dias.

Por fim, e talvez mais alarmante, a prescrição a torto e a direito de antibióticos fazia jus ao nome da classe de fármacos, afinal era um atentado contra a vida daqueles pacientes. Pareço um louco dizendo isso. Que propriedade tenho para questionar as ações de um profissional já formado? Bem, pode ser que eu não tenha esse direito, mas médicos que entendem do assunto o têm, e, em conversas com tais médicos, eles viram fundamento em minhas indagações.

Assim, analisando as prescrições feitas sem exames que confirmassem o diagnóstico, restava ainda a dúvida da origem da doença e o que o Doutor dissera ser bacteriano poderia muito bem ser viral. O máximo que o antibiótico faria nesses casos seria selecionar as bactérias mais resistentes que, porventura, habitassem aquele paciente sem causar doenças no momento, para, em um futuro, acometê-lo sem deixar chances para cura. De onde você acha que surgem as bactérias multirresistentes?

Não quero cuspir no prato que comi nem quero que pensem que o Doutor seja um péssimo profissional. Afinal, com ele tive minha primeira experiência como médico de verdade e, apesar de todos os pesares, se, hoje, sei o que sei, muito devo a ele. Além disso, ele se mostrou um dos médicos mais humanos que tive o prazer de acompanhar; basta olhar para a forma que ele usava para conversar com o paciente. Contudo, não quero me tornar um médico exatamente como ele, que seguiu o baile e fez o que vários outros médicos fizeram antes dele. Pelo contrário, não quero me deixar levar pelo fluxo das águas e, se preciso for, nadarei contra correntezas. Não quero ser somente mais um a atender no SUS.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 17/09/2019
Reeditado em 04/06/2021
Código do texto: T6747547
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