Mocó Deitado

Eu não tenho tempo de Santo do kulailai, sou nova de navalha.

Mas cresci dentro de espaços de culto aos Orixás, pequena, com Mainha, na Sessão de D. Ladu, no Pero Vaz. Depois com Margô, no Terreiro de D. Zulmira, em Coqueiro Grande, e na Casa de Véia ( Mãe Valdelice), no IAPI, todos em Salvador.

Quando criancinha , que algumas mulheres de Santo passavam lá pela rua e saudavam mainha, elas complementavam:

- Estou indo pra roça

E lá iam elas, de branco , com o mocó.

Eu não sabia o que era roça, mas mainha sabia.

Era simbólico: roupa branca, mocó ( não lembro das contas), estavam indo pra roça.

Uma espécie de bilhete carimbado, identidade visual.

Algumas dessas mulheres iam lá em casa, eu tomando nota na conversa, pegava uns flash:

- meu irmão de barco, minha irmã da seita...

- Estou indo ajudar minha irmã da seita ..., de barco.

Era tão forte essa relação de irmandade.

Olhando pra trás, era muito linda.

Já morando com Margô, presenciei relações lindas de irmandades de axé.

D. Onezia e D. Detinha, irmãs, amigas inseparáveis, não eram do mesmo Barco. As duas no Orun.

Véia ( Mãe Valdé) e Raimundo de Omolu. Mãe Valdelice, ( no Orun), falava com tanto amor desse irmão que mesmo eu, que não andava enfiada na casa dela, sei dessa relação.

D. Antônia, uma do kulailai, antigona, falava:

- irmãos de Barcos é o mesmo que irmão carnal

- vocês são da mesma navalha, um tem que ajudar o outro

O que se percebe é que essas relações deixaram de beber no Sagrado. Ficaram tão fluídas que estão sem encanto.

O mocó está arriado, e a unidade caiu, se perdeu no caminho de casa para a roça.

Não sei se é levianidade minha , mas parece que há um estímulo para se quebrar esses vínculos. Quem ganha, ninguém.

Só perde uma identidade familiar que só as religiões de matrizes africanas possuem. Perde o Ilê que cede espaço pras disputas, intrigas e desamor. Perde o Babá/ Yá pq publiciza a falta de doutrina no roncó.

Irmão/irmâs de Santo não perdem essa condição mesmo quando trocam de navalhas, porque o Sagrado ñ é perecível. O Sagrado é essência de vida que transborda paredes, sejam de bloco ou de taipa.

Se ensinam que ao sair de uma roça, seja por vontade ou expulsão, deixou de ser irmão/ irmã, o mocó está virado.

Ao sermos iniciados em um Ilê, Terreiro, recebemos a força sagrada dos envolvidos e compartilhamos a nossa. Quando saímos, parte de nossas forças ficam e levamos partes conosco. Isso é axé, isso é o axé.

Num mundo de desamor, levantemos nosso mocó, além dos fundamentos, acrescentemos amor.

Compartilhar amor é nossa missão, porque carregamos o sagrado em nosso corpo. O Sagrado é a força vital pra quem é de axé.

Ao menos deve ser.

No funeral de uma Yá ( do kulailai), o primeiro Orixá que chegou foi de uma filha dela, que havia saído da roça e espalhava em todo canto que havia sido "raspada errada". Apois, o Orixá que chegou e foi a frente do cortejo foi o Orixá que a Yá raspou( me arrepio toda).

Ela desconheceu a mãe e os irmãos.

Orixá reconheceu a todes.

Que Orixá levante nossos mocós e confirme nossa identidade religiosa através do amor, do respeito, da união e do afeto.

Outubro é um ótimo mês pra regar a Flora( Ewé assa!)

Minhas irmãs, meus irmãos, vocês são nossxs convidadxs.

Altamira Simões
Enviado por Altamira Simões em 05/10/2019
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