“Se fosse só sentir saudade, mas tem sempre algo mais”... (um texto sobre dor e superação, lembrando um princípio budista que diz que toda dor vem do desejo de não sentirmos dor)

Dia 18 de outubro sempre é uma data para lembrar tanta coisa. Uma forma de me revisitar e aprender com toda dor. Afinal, por mais que penetremos mais fundo naquilo que foi doloroso, parece que nunca é suficiente para termos todas as lições sobre as coisas.

Ontem me revisitei e lembrei dos dois anos de partida do meu padrasto e tudo que aprendi ao longo dos anos em que ele esteve internado em uma luta constante para continuar vivo, usando todos os medicamentos possíveis e no acompanhamento necessário dos médicos.

Sempre é uma data que traz de volta aquele susto que trouxe, além da dor de perder um ente querido, o alívio. Afinal, foram 4 anos de luta do meu padrasto no hospital, onde ele vivia em uma cama, já sem o movimento das pernas. Ali eu entendi a máxima de que não é mais o que a pessoa é, mas o que ela significa. A pessoa a quem você tem todo carinho, afeto, foi transformada pela doença. A força não é a mesma. A aparência muda. Você zela por alguém que já não é o que foi em outro momento. Mas você entende bem o que ela significa e o que te faz estar ali, dando tudo de você por alguém que, um dia, também fez toda a diferença na tua vida.

Sim, estive com ele em todos momentos. Os 4 anos em que ele esteve acamado foi também 4 anos de grandes transformações pra mim. Foi a minha verdadeira faculdade. Pois só eu sei o quanto as madrugadas naquele hospital me afetavam. Muitas vezes de forma positiva até. Escrevia como um louco, refletia sobre tudo. Fazia minhas coisas, tipo gravar novela ou shows de humor, e voltava para o hospital às quintas para cuidar do meu padrasto. Não tinha nem tempo de comemorar algum dia especial, porque tinha essa função. E aproveitei para aprender com ela, a tirar o melhor de mim.

Nesses 4 anos não foi só a doença do meu padrasto que me abalou. Eu passava por um momento difícil também, muitas vezes sem trabalho, sem dinheiro. E me sentia com um potencial bem abaixo do que eu era. Como se eu vivesse apenas os 10 % da minha capacidade. Só eu sei os momentos que eu me encolhia na cama e pensava que se eu morresse tudo seria mais fácil. Sim, eu quis partir diversas vezes. Fechava os olhos profundamente e esperava contar com esse momento de deixar de existir. Foram momentos de muitas provações. E muitas transformações. Porque depois eu achava que não era justo eu querer ir embora. Não era justo com minha mãe, com meu filho, com meu padrasto e com as pessoas que me amam, em geral. E logo me via lutando novamente. Mas não, não tive depressão. Era só uma vontade louca de esse mundo que me machucava de tal forma que só na minha partida eu via a possibilidade de extinguir essa dor.

Os quatro anos de doença do meu padrasto também foram os 4 anos do meu renascimento. Eu passei a me exercitar muito mais. Fiz uma reeducação alimentar e quase todo dia eu corria na areia da praia. Como meu padrasto ficou sem o movimento das pernas, pensei que eu seria as pernas dele e que aproveitaria o máximo as coisas que ele gostava, como estar na praia e caminhar no calçadão de Copacabana. Eu, que nunca fui de praia, passei a ser. Eu, que nunca fui de sol, passei a celebrá-lo e agradecer a cada dia por dias belos onde eu podia celebrar a vida.

Naqueles dias também estive mais com minha mãe. E, no fundo, deu tudo certo. O fato de eu não estar trabalhando tanto, sendo pouco requisitado pelas produções artísticas, fez-me ter a chance de viver aquele instante, de poder passar as madrugadas com minha mãe em conversas profundas. E, principalmente, de poder cuidar do meu padrasto. Tudo na vida tem um sentido de ser. Tudo na vida tem um propósito. É só entender o que o tempo quer dizer.

Aqueles dias também foram os dias em que mais bebi na vida. E usei algumas drogas como forma de suportar toda dor. Vivia igual a um Zumbi, sob efeitos dopantes. Mas não me arrependo de nada. Foram momentos de auto-observação, de ver como eu reagia a tudo. Drogado era mais simples pensar em mim como alguém além de uma mentira. No fundo, fiz todos os testes possíveis para ver como eu suportaria aquilo tudo. E sempre pensava: quando chegar ao fim do poço, só me restará dar um impulso para voltar a superfície. Não havia outra escolha. Vale dizer que sempre tive a sorte de ser alguém que não tem muita facilidade em se viciar nas coisas, por isso já entrei em várias e saí de todas. O mais legal seria não precisar de nenhum tipo de droga, mas isso só com o tempo a vida foi me ensinando.

A vida seguiu cambaleante. Até que chegou o dia 17 de outubro de 2017. Ao entrar em casa, dando algumas risadas com amigos, minha mãe vem pelo corredor com meu sobrinho. Só me olhou nos olhos e disse: “O Quim partiu”. E logo tudo se transformava em mim. Da alegria à dor em fração de segundos. E logo aquele dia estava transformado e toda correria se fez necessária. “Cadê a papelada da cremação?”, “‘Como fazemos para liberar o corpo?”, “Minha irmã está vindo de Macaé?”, “Liga para irmã do Quim”, “Deixa que eu vou no hospital resolver isso”... Ufa! Isso me lembrou do primeiro dia de internação dele e veio todo um filme na minha cabeça. Eu, que nada entendia de hospital, tive que aprender tudo ali na marra. Tanto no começo quanto no final. O processo doloroso se encerraria.

A parte mais comovente é quando pedem para alguém da família ou próximo que vá reconhecer o corpo. Eu, sem titubear, falei que iria até a sala. E logo vi meu Quim deitado em uma mesa. A gente entra numa sala dessa e se depara com uma pessoa querida dentro de um plástico preto. E você puxa um fecho-eclair e se depara apenas com um corpo. Sim, não é mais o que ele é, mas o que ele significa. Dei-lhe um beijo na testa e agradeci por tudo, sem lágrimas nos olhos. Apenas gratidão. E entendi que, no final, peões, bispos, reis e rainhas voltam para a mesma caixinha.

Na volta pra casa, tomamos uma cerveja e fiz questão de deixar um copo na janela para ele. Depois disso, desabamos na cama e no dia seguinte pessoas chegariam para o velório e cremação. Mas optamos por não ir. Tudo já tinha sido bem doloroso que demos espaço para que outras pessoas pudessem se despedir dele.

Com a partida do meu padrasto, disse para minha mãe que iniciaríamos um novo ciclo e que o pior já havia passado.

E sempre digo: cuidado com o que você deseja, você pode conseguir.

2018 foi um ano incrível. E sempre soube que o Quim, onde estivesse, estaria zelando por mim e fazendo com que eu voltasse a ser o Raul com toda a minha fortaleza peculiar. Ele me fez ter grandes lições na minha vida. Lembro que um pouco antes de ele entrar no hospital, em setembro de 2013, eu me via em total descrença de tudo. Havia me tornado um perfeito ateu. Eu me declarava um ateu com fé. E assim segui, sem ter essa questão de Deus em minha vida. Foi uma escolha e hoje digo que foi necessária (afinal sempre tive uma visão bem crítica sobre religião, desde os 14 anos). Pois bem, já um pouco antes do Quim falecer, pensei: “Vou conversar com Deus… Afinal, se Ele existe mesmo vai me perdoar por eu ter duvidado dEle”. Pensei também que não acreditar em nada é escolha mesmo, mas que acreditar em algo parece sem bem mais interessante. Aí que vem 2018 para me dar mais uma lição e presente. Eu, que sempre flertei com o Budismo, acabei me convertendo em 16 de março de 2018. E foi um presente que me dei depois de tanto refletir. E, sim, passei a viver os 100% da minha potência. E entendi que mereço ser feliz assim como todas as pessoas. Acumulo boa sorte para poder agir como transformador do mundo em minha volta.

Hoje sou grato por tudo que aconteceu e mais grato ainda pelo budismo me dar um caminho, um foco e me fazer entender e superar as coisas de maneira voraz. Tanto que logo no começo do ano de 2018 vi a saúde do meu pai ser afetada de forma assustadora. Ele teve grandes problemas mas a fé me fez mandar para ele toda energia de cura, porque acreditei que eu precisava dele aqui e que eu não tinha que ter mais um baque como esse naquele momento. E meu pai venceu um dos momentos mais difíceis da vida dele.

Quis escrever tudo isso para vocês, porque acaba sendo uma história de superação. Hoje consigo me ver naqueles instantes difíceis, lutando de alguma forma. E hoje me sinto um vencedor. Ainda não tenho tudo que quero, mas sou muito grato por tudo que tenho. Honro meu pai, honro minha mãe. E luto todos os dias. Hoje sou um ator muito melhor. Uso muito da dor que tive na vida em meu trabalho (nem eu sei como eu atuava antes sem essa chave que mudou tudo). E isso faz de mim um artista ainda mais potente. E sigo nessa luta e sigo nesse destino. Acredite, tudo vai passar. E você um dia vai sorrir de forma tão enérgica, sem acreditar que você venceu coisas que pensava que não conseguiria. E tudo virará aprendizado, crescimento. Por isso, depois de tudo, apostei mais no meu coração e na vontade de levar histórias para as pessoas como incentivo. A vida de ninguém é fácil. Todos carregam a sua própria cruz. Não sei o que acontecerá amanhã, mas hoje eu digo: SOU VITORIOSO, como sei que também és. NMRK! Com amor, Raul Franco