Outra crônica de ônibus

Cabe mais um? Cabe! Se não cabe, a gente faz caber. E o ônibus prossegue ainda mais cheio do que antes. Há uma mulher em pé à minha frente. Não há ferros sobrando, ela se segura na janela aberta. O ônibus balança e com isso a bolsa dela começa a bater na mulher que está sentada ao seu lado. “A senhora quer sentar aqui?”, pergunta, com ironia, a mulher sentada. A mulher em pé é das bravas e não deixa barato: “Minha filha, ônibus balança mesmo, quem quer conforto vai de Uber!”. E lança uma olhar de desafio. Uma briga está prestes a estourar na minha frente. Duas mulheres pobres querem brigar entre si e as duas têm razão: uma ao querer viajar sem ter uma bolsa batendo nela, outra ao sugerir que andar de ônibus, hoje em dia, é assim mesmo. Estou vendo o momento em que começarão a se estapear, como já vi em outras oportunidades. Uma delas, no entanto, se contém: “Não vou nem te responder”. “É bom mesmo”. Prossegue a viagem.

Mais uma parada. A cada dois passageiros que descem, sobem cinco. Comprime-se o espaço ainda mais, se é que isso ainda é possível. O meu braço está todo esparramado na cara de uma menina. Não para de entrar gente. Há um sujeito de mochila nas costas. Mochila nas costas dentro do ônibus lotado é talvez a única coisa que me faz cogitar a pertinência da pena de morte. Uma garota é da mesma opinião e começa a reclamar com o sujeito. “Se tirar essa mochila das costas, vai ter mais espaço, né?”. O cara é ainda um adolescente e resolve retrucar: “Ah, minha mochila tá vazia, não tem praticamente nada dentro!”. E começa outro bate-boca. Eu já tomei o partido da garota e agora olho para o adolescente e penso: “Idiota”. Eu, que estava tão calmo quando entrei no ônibus, já estou chamando mentalmente os outros de idiota. Nada me garante que eu próprio não me envolva em um bate-boca, quem sabe até em uma agressão física. Todo passageiro em ônibus lotado está a um passo de se envolver em conflitos desse tipo. Nós estamos todos estressados, estamos apenas querendo chegar em casa, e aquilo que nos oferecem para isso é um ônibus lotado. O meu braço ainda está na cara de uma menina. Evito me aproximar demais dela, sob pena de ser acusado de assédio. Muita coisa que se passa dentro de um ônibus lotado seria considerada adultério em outras circunstâncias. Em algumas, seria considerada orgia.

Olho para meus colegas de infortúnio. Não é admirável que passemos por isso todos dias sem que ninguém se revolte para valer mesmo? Mas está tudo germinando, e um dia, um dia... Ah, a terra então rebentará. Sinto que já escrevi essa crônica antes, e sinto que ainda vou escrever outras assim, porque é para mim sempre admirável que ninguém faça nada.

Ali estão centenas de cristãos empurrados em cima de outros tantos cristãos – a maioria deve ser cristã mesmo. Ali está o Cristo crucificado outra vez, porque ali está o ser humano destituído de toda a dignidade que se acredita restaurada pelo Cristo. E, no entanto, bancada evangélica nenhuma se insurge contra isso. Todos estão preocupados em proteger a vida, marchas são feitas em favor da vida, mas é a vida de alguém que nasceu, a vida de alguém que não foi abortado, que é desrespeitada, vilipendiada, o dia todo, todos os dias, no transporte coletivo – sem causar a menor comoção. Prega-se nos púlpitos desse país a prosperidade. Mas o que é, afinal, a prosperidade? É ter um carro, é nunca mais precisar andar de ônibus. Andar de ônibus é, nas igrejas, algo a ser superado com a ajuda de Deus – é, portanto, algo do diabo. E deve realmente ser um Deus do impossível esse que bota tantos carros individuais no trânsito, como se jamais pudesse chegar até o limite.

Há uma revolta silenciosa sendo germinada. E no dia que ela estourar será pior do que em 2013.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 28/11/2019
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