Antigamente eu tinha asas nos pés

Feito o deus Hermes, da mitologia grega, eu voava com minhas asas atadas aos tornozelos, pelas ruas. Caminhando ia até a china, subia o Himalaia, descia o Kilimanjaro e o fim do mundo não me parecia longe.
Assim como Hermes, tinha múltiplas funções e nenhuma estranheza me era estranha.
Usei esse dom maravilhoso que Deus me deu para correr atrás de todos os meus prejuízos.
E foram muitos, resultado de uma vida difícil, de uma infância complicada, uma adolescência atropelada e uma juventude pesada de responsabilidades.
E por um tempo eu consegui.
Um tempo que me parecia longo há época e hoje, quando olho pra trás, vejo que foi tão curto.
Ah, mas eu tirei tudo de letra, vejo agora.
Ainda que me parecesse, às vezes, que não ia conseguir nunca chegar a algum lugar e me frustrava por não ter voado por outras paragens.
Algumas coisas a que me propus, deram certo, claro, outras não.
Hoje eu sei que deram certo aquelas, exatamente aquelas, que eu precisava que dessem certo.
Meus pés, que eu adornei com calçados de todos os formatos, alturas e cores diferentes, nunca foram bonitos, mas ergonomicamente "construídos" para suportar todo o peso do meu mundo.
Moro no lado continental de uma ilha que tem o apelido de “ilha da magia” por conta de sua cultura popular, crendices e imensas belezas naturais.
Uma vez, na década de noventa, houve um primeiro evento chamado com esse nome mesmo: ilha da magia. Muitas atividades diferentes estavam espalhadas pela cidade. Então, num determinado ponto do centro, a gente pagava uma taxa, alguém colocava nossos dados num computador jurássico e uma impressora obsoleta vomitava alguns quilômetros de tiras de papel com suas previsões.
Acompanhada de algumas colegas de trabalho, na farra e na curiosidade, fiz isso e recebi um rolo de papel de volta. Sentamos na praça e lemos em voz alta, rimos muito e discutimos sobre o que se encaixava ou não na minha pessoa. Levei para casa e guardei por muito tempo.
Um dia, durante uma limpeza séria em meus guardados, achados e perdidos, parei e fiz nova leitura das previsões e qual não foi minha surpresa quando me deparei exatamente com uma frase mais ou menos assim: cuide bem dos seus pés, seus bens mais preciosos, onde reside suas asas.
Nunca poderia ter imaginado que a profecia se concretizaria.
Certamente não foi adivinhação da máquina, porém uma coincidência interessante.
Pois bem, a essas alturas eu já não havia cuidados deles. Atrapalhada com o que eu não conhecia, deixei ficar com paliativos que não deram conta do recado que meu sistema imunológico me enviava.
Eu, que nasci pobre de marré, não herdei nem um tostão furado de ninguém, porém, descobri um pouco cedo demais, que havia herdado uma doença crônica que até hoje não sei de que lado da família veio.
Chorei, esperneei, tomei remédios amargos para o corpo e para a alma, no susto.
A medicina fez o que pode, o Estado me forneceu medicamentos de alto custo e tive que aprender a conviver com as novas limitações e dores.
Esqueci de como é que se corre com asas nos pés.
E a gente aprende, a gente aceita, porque a vida continua em outro ritmo que diminui as expectativas, que modifica, que faz com que nos adaptemos.
O tempo nos ensina a ter paciência, a gente para de correr em desvairada procura, desacelera e mesmo assim segue em frente.
Foi aí que aprendi que, correr, nem sempre nos leva a algum lugar. Acho que corri muito antes mesmo de aprender a andar direito.
Minhas asas murcharam, aprendi a caminhar sem voar.
Minha metamorfose se fez ao contrário. Virei casulo depois de ter sido borboleta..






 
Roseli Schutel
Enviado por Roseli Schutel em 21/12/2019
Reeditado em 18/05/2020
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