QUANDO O TREM APITAVA...

            Da série:JOGANDO CONVERSA FORA



Tarde de sábado. Janeiro/2020.
Choveu intensamente na madrugada e agora este “mormaço” um céu grávido de chuva, me impedindo de aparar a grama do lado de fora do muro aqui de casa.
Tarefa que faço com prazer até porque a exposição da minha obesa figura manobrando o aparador , não sei por que razão, costuma atrair uma “leva” de vizinhos e conhecidos que vêm por a conversa em dia além de retardar a conclusão do trabalho, é claro.
Porém, gosto dessa interação com as pessoas, os papos, as novidades, as risadas e...uns mexericosinhos, até porque a carne é fraca e ninguém é de ferro.
Mas, voltemos ao assunto.
Confortavelmente sentado, diante do monitor, ouço a tarde estraçalhar-se aos apitos de uma locomotiva.
A linha férrea é bem distante de onde me encontro neste momento, mas o eco me chega aos ouvidos como que fora muito próximo.
[ Quando o apito do trem é bem nítido,apesar da distância “é sinar de chuva e trevoada”, dizia minha avó paterna em sua sabedoria cabocla que geralmente acertava ]
Este apito que agora ouço, embora modernizado, remete-me à Maria Fumaça que trazia meu pai nas tardes de sábado em priscas eras.
Manobrando uma patrola a semana inteira pelo interior do município,ele retornava nos fins de semana ao nosso convívio.
[ Dona Dida, botava a mão na massa e lhe preparava uma deliciosa cuca com goiabada, sua predileta ]
Sempre de bem com a vida e exercendo com muito profissionalismo a sua humilde profissão, meu pai abriu caminhos, uniu por estradas as pequenas comunidades dos fundões iratienses, proporcionou uma certa facilidade nas colheitas e transportes das safras, e – de certa forma -socializou os encontros de famílias que dispunham tão somente de carroças como meio de transporte.
Ao longo do caminho foi escrevendo na lâmina da patrola a sua modesta história de vida, deixando atrás de si, janelas arredias , sótãos de olhares incansáveis , acabrunhados , espiando as distâncias entrecortadas por paralelas de chão batido.
Era, por seu trabalho feito com muita dedicação, brindado com toda sorte de “agradinhos”.Assim,nas tardes de sábado, um carroceiro de sua amizade,punha-se a espera na estação de Engenheiro Gutierrez, para o transporte até nossa casa , das inúmeras penosas, das batatas, das cebolas, dos ovos e tantos outros produtos com o que era carinhosamente agraciado.
Tinha pequenos gestos de delicadeza que jamais o fizeram esquecer das jujubas, das bolachas de mel  adquiridas no bar da dona Tecla, além das duas maçãs com que nos acarinhava (à mim e à minha mãe).
As últimas, compradas na plataforma da estação, devidamente embrulhadas em papel roxo, nos eram entregues acompanhadas da frase de efeito: “Maçãs argentinas ! Custam caro,mas vocês merecem”.
Agora estes apitos, mexendo com este quase combalido coração, resgatando a singeleza que sempre permeou a minha (nossa) existência.
Coisas de velho saudosista.
Nem liguem !
A chuva cai abundantemente lá fora.Por trás da vidraça espio a roseira impotente em sua fragilidade de flor.
O pensamento voeja ! Até que um novo apito me acorde das divagações.


Joel  Gomes  Teixeira