Crônicas Médicas - Pântano Nebuluso

Este era meu terceiro dia de estágio no Pronto-Socorro local e, de longe, o dia em que mais aprendi sobre medicina. Não aquela que os livros nos trazem, imutável, intocável, mas a da vida real, cheia de variáveis e possibilidades, na qual um mais um nem sempre é dois; a medicina dos artistas, sim, daqueles que nasceram com a arte do curar.

O P.S., como de costume, estava lotado e as emergências faziam com que as fichas de atendimento se acumulassem cada vez mais sobre a mesa enquanto o médico atendia os casos mais graves que lá chegavam. Eu, como estagiário, era como uma sombra do plantonista, seguindo seus passos, ouvindo seus conselhos e suas explicações. Ele era um médico de meia idade, acostumado com a rotina puxada dos plantões, detentor de vasto conhecimento fisiopatológico, uma verdadeira mina de informações para o aluno atento e interessado.

Quando terminados os atendimentos da urgência e emergência, voltamos à salinha do P.S. para dar fim àquela pilha de fichas acumulada. Como a cidade, flagelada, sofria com uma forte epidemia de dengue, a maioria das fichas era sobre resultados de hemogramas ou sobre pacientes com as queixas típicas em busca de um exame de sangue e tratamento. Assim, o trabalho se tornava, de certa forma, tedioso, mas, ao mesmo tempo, objetivo e dinâmico e as fichas, pouco a pouco, começavam a diminuir.

Algum tempo depois, em meio a uma dessas consultas, adentrou à sala um policial militar, fardado, trazendo uma ficha com uma situação um tanto quanto diferente, necessitando de um grau maior de atenção e prioridade em relação às demais. Assim, terminada a consulta em andamento, chamamos o paciente do caso em questão.

Ao caminhar para dentro da sala, seguido de perto pelo policial, era assustadora a dor que o homem, também de meia idade, carregava consigo, uma dor que se manifestava pela alma. Seus olhos, de um castanho profundo, denunciavam a depressão. Quando falou, respondendo aos questionamentos do doutor, a voz, monótona, entregou sua apatia. Era sua terceira tentativa de suicídio e suas expressões, ou melhor, a falta delas mostrou sua indiferença entre a vida e a morte, ainda que no mundo existissem pessoas que dependessem dele. Contudo, sem ter recursos suficientes para ajudá-lo mais, o médico receitou alguns remédios e pediu para que ficasse em observação.

Após alguns minutos, uma das secretárias da recepção pediu licença e entrou na sala. "Doutor, a filha do paciente trazido pelo policial está aí na frente e quer falar com o senhor".

Antes que a menina entrasse, o médico voltou-se para mim e começou a discutir sobre o caso. E, das palavras ali trocadas, essas foram a que me marcaram e ficaram gravadas na cabeça: "na medicina, nem nunca nem sempre". Assim, apesar dos casos parecidos e dos sinais apresentados, era preciso saber que nem todos as situações são iguais e que um nunca na medicina pode ser perigoso. Por isso, neste momento, seria necessário atentar para os menores detalhes e manter a mente sempre aberta e vigilante.

Quando a garota entrou, acompanhada por outra jovem um pouco mais velha, ela se sentou a nossa frente e, com visível nervosismo e nítida apreensão, começou a explicar, com detalhes escondidos pelo paciente, o caso como um todo. Em meio à história, disse ter conseguido uma vaga para o pai em uma clínica psiquiátrica para o dia seguinte e que seria necessário que o pai passasse a noite ali, para que não tentasse, pela quarta vez, tirar a própria vida.

Assim seria feito: o pai ficaria em observação e a internação na clínica psiquiátrica seria intermediada pelo Pronto-Socorro. Enquanto a papelada era feita e a história se desenrolava, mais tínhamos noção da gravidade do caso e mais fundo mergulhávamos na dor em que aquela família se encontrava. Absorvendo tudo aquilo em silêncio, o doutor buscava uma forma de explicar de modo palpável o que aquele homem enfrentava. Assim, em um monólogo inspirado, ele falou: "a mente humana é um território pantanoso e cheio de neblina. Aqueles que nos guiam, através dela, por um caminho errado, acreditando ser o correto, são chamados esquizofrênicos. Por outro lado, aqueles que nos induzem, conscientemente, ao erro apenas para nos afastar da verdade e do tratamento adequado têm a malícia impregnada. Estes últimos são os mais perigosos para nós médicos e seu pai se encaixa neste segundo perfil. Este tratamento é importante para que, pouco a pouco, os muros invisíveis sejam quebrados. Vai além dos medicamentos. É um trabalho de formiguinha, pode levar mais de ano, e ele vai precisar de cada uma de vocês".

Ditas estas palavras e terminando a parte burocrática, o plantonista cumpriu com seu dever. Desejando sorte, dispensou as meninas. Eu, muito menos que um coadjuvante naquela cena, era um mero espectador. Enquanto as acompanhava até a saída, rogava para que aquelas jovens, enviadas juntas ao pai pelo caminho tortuoso do pântano nebuloso chamado mente humana, encontrassem a estrada para fora da depressão, mesmo sabendo que, uma vez lá, um homem poderá nunca mais sair.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 26/02/2020
Reeditado em 26/02/2020
Código do texto: T6874635
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