PININHA E O VÍRUS

Bom dia, Pina...

Bom dia, dona Gertrudes

Por que o portão está aberto? Você está entrando ou saindo?

Nem entrando, nem saindo.

Não entendi.

Gegê, estou limpando a maçaneta.

Que deu em você?

O moço da televisão disse que precisamos limpar muito bem as maçanetas, porque tem um negócio que pode matar as pessoas. A senhor ouviu falar?

Ah! É o vírus que está se alastrando pela Terra.

É isso mesmo. Eu já passei álcool, cândida e agora estou dando um brilho.

Nossa, Pina! Como você é cuidadosa.

Preciso cuidar da senhora. O moço da televisão disse que temos que cuidar bem das pessoas idosas.

Quem é idosa aqui? Eu tenho bem menos de sessenta anos.

Quantos, Gegê?

Não vem ao caso.

Gegê. O moço da televisão disse que é para a gente ficar em casa.

É recomendável.

Mas, se eu ficar em casa, quem vai cuidar da senhora?

Ora, Pina! Eu sei muito bem me cuidar sozinha.

Não precisa de mim?

Precisar eu preciso, mas consigo viver sem você.

Ah! Quero ver. A senhora não lava um prato.

Pina, isso é seu serviço. Quando você não vem ou tira férias, eu lavo e guardo toda a louça.

Sei, não! Não tem uma segunda-feira que eu chegue aqui e não encontre aquela bagunça na cozinha.

Claro, Pina. Se eu arrumar a cozinha no domingo, o que você vai fazer na segunda pela manhã?

Posso olhar o caderninho?

Ainda não decorou?

Decorar, eu decorei. De manhã, recolher a roupa suja e as toalhas do banheiro, colocar na máquina de lavar. Enquanto a máquina está lavando, lavar toda a louça, passar pano na cozinha. Quando a máquina parar, colocar a roupa no varal, depois...

Chega, Pina!

É bastante coisa, a senhora concorda?

Pina, é tanta coisa que dá tempo de você assistir televisão antes do almoço.

Ainda bem que a senhora lembrou. Esqueci de tirar a comida do freezer.

Pina! Como você pode esquecer do almoço?

Culpa do moço da televisão. Ele disse que tinha que limpar as maçanetas e eu esqueci do almoço.

Ai... Ai... Ai... Ai... Ai... Vai atrasar o almoço hoje. Por mim, tudo bem.

Ah! Lembrei, Gegê! É tanta coisa, que eu me esqueci disso.

Disso o quê?

O moço da televisão falou que é para pedir comida pelo telefone. Até anotei uns lugares, quando vinha no ônibus.

Pina... É para chamar comida “delivery” quando não tem comida pronta. Tinha comida no freezer.

Foi mal, Gegê! É verdade. Sobrou lasanha que eu fiz quinta-feira e um pouco de peixe que eu fiz na sexta.

Pois é, Pina! E temos que economizar, porque atravessaremos tempos difíceis.

Por que? O moço da televisão falou isso. Não entendi nada.

Pina, é meio complicado para entender.

Ai! Que alívio, dona Gertrudes. Pensei que era só eu. A senhora também não entendeu?

Entendi...

Então, explica pra mim.

É meio difícil de explicar... Mas, quer dizer que vai faltar dinheiro para os patrões pagarem os empregados.

Ufa! Ainda bem que não sou mais empregada.

Como assim, Pina?

A senhora não diz que sou “secretária do lar”, “colaboradora”?

É a mesma coisa. Se meus clientes não me pagarem, não terei dinheiro para pagar você.

Puxa, Dona Gertrudes, a senhora teria coragem de me dar “calote”.

Não se trata de coragem, Pina. Se eu não receber, não terei como pagar nada.

O que eu faço com as minhas contas?

Dá o “calote”.

Mas, eu prometi para a Zefinha da lojinha que este mês eu pagava. E tem a conta do mercado do seu Pereira, a conta de luz, a conta...

Eu sei, Pina. Pare a ladainha. Também tenho meus carnês e contas.

E como a gente resolve isso?

Só tem dois jeitos. Ou dispenso você ou fico devendo e pago quando puder.

Isso não é justo!

Eu sei, Pina. Mas, é a realidade.

Ah! Então é por isso que o moço da televisão falou pra todo mundo ficar em casa. Ele também não tem dinheiro para pagar a “secretária do lar” dele. Tudo mentira essa história de “viro pra cá”, “viro pra lá”.

Ai... Ai... Ai... Ai... Ai... Pina, o vírus existe. A falta de dinheiro é a consequência da paralisação econômica do país.

Dona Gertrudes, “num vem cum esse palavriado compricado, pra mor de me confundi”.

Ai... Ai... Ai... Ai... Ai... Pina, acalme-se. Fale direito.

Desculpa eu, Dona Gertrudes... É que a senhora me arretou e quando arreto “eu se atrapalho toda”.

Pina, eu sei que é difícil para nós, mas veja o que é melhor para você.

Bem que o seu Pereira falou isso, sábado, quando me cobrou a conta do mês atrasado e eu falei que a senhora me pagaria na semana que vem e aí, eu pagava ele.

Pina, mas na semana passada eu paguei uma parte adiantada de seu salário.

Não vem ao caso, Gegê.

Ai... Ai... Ai... Ai... Ai...

Seu Pereira disse: Pininha, fica esperta, que sua patroa pode lhe dar o calote. E não é que ele estava certo.

Bem, Pina. Encurtemos a conversa. O que você decide?

Gegê, posso confessar uma coisa?

Claro!

Eu não estava limpando a maçaneta. Estava esperando a senhora levantar para me despedir. Já tinha até juntado as minhas coisas e colocado na sacola para levar.

Ai, Pina! Vou sentir sua falta. Dá um abraço.

Epa, epa, epa... O moço da televisão falou que não é para abraçar.

Está certo. Encoste seu cotovelo no meu.

Peraí, Gegê. Tenho uma terceira solução.

Como assim?

Lembra que no começo da conversa, eu falei que o moço da televisão falou que é para cuidar dos idosos?

Sim, mas e daí?

A senhora diz sua idade para mim.

Pina, já disse que não sou idosa... Mas, tudo bem, onde você quer chegar?

Gegê, é o seguinte: “Com essa situação do vírus, ninguém vai me contratar mesmo. Se eu ficar lá na Vila, vão ficar me cobrando todos os dias. Então, eu fico aqui morando com a senhora e faço papel de boazinha lá pro pessoal”.

Pina! Como você pode ser tão interesseira? Enganou-me o tempo todo com esse jeito de boazinha.

Ah! Gegê. É a necessidade... E também porque eu gosto muito da senhora, nem cobro as horas extras.

Pina... Pina... Feito.

Oba! Então, deixa eu guardar minhas coisas. Dá uma forcinha, Gegê.

Pina! Não era uma mochila? Duas malas? E parecem pesadas...

É que, nas dúvidas da senhora topar, eu trouxe umas coisinhas básicas para o caso de demorar muito tempo.

Ai... Ai... Ai... Ai... Ai... Vamos lá, Pina! Segura de um lado...

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 24/03/2020
Reeditado em 25/03/2020
Código do texto: T6895399
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