A Transgressão

Laura passava pela Rua da Ladeira todos os dias. Subia e descia, ia e vinha, sempre ocupada, sempre preocupada, nunca satisfeita. Vivia ligada no piloto automático, apenas executava. Seguia seu roteiro, nenhum passo a mais ou a menos. Nenhuma ação, apenas reação, nenhuma reflexão.

Um dia, passando novamente pela Rua da Ladeira, se distraiu. Olhou para os lados, observando a paisagem pelo caminho. Tinha esquecido o relógio em casa e o celular estava descarregado, então caminhou, pela primeira vez, achava, sem rédeas.

Sorria a cada casa, casebre, comércio, árvore, praça ou qualquer outra coisa durante o caminho, feliz por observar. Num dado momento do caminho, observou uma casa, entre outras, mal pintada, cores desgastadas, parecia triste. Na entrada da casa, após o portão, havia uma gaiola pendurada.

Como a entrada ficava há um metro do portão, se encostou naquele frágil portão para observar o pássaro. Ele era colorido, bonito. Nunca tinha visto algo assim. Não sabia de qual tipo era, mas gostava das cores e da beleza daquela ave. Tinha pela parda e de barriga alaranjada com mistura de vermelho escuro. Ele cantava, e embora o canto fosse melodioso, transmitia um que de tristeza.

Laura observou o pássaro, ali, preso, funcionando muito bem, cantava, enfeitava aquela casa desbotada, mas estava preso, enjaulado, e, se olhasse bem, não era difícil perceber sua tristeza.

Observou por um tempo. A casa parecia vazia. Nenhum sinal de movimento nela até aquele momento. O portão era frágil e não estava bem trancado. Então, subitamente, decidiu cometer seu primeiro, quem sabe não o último, crime. Num ímpeto, abriu o portão, se aproximou da entrada e abriu a jaula que prendia aquele lindo passarinho.

Ele, meio acanhado (não tinha costume de estar livre), saiu da gaiola devagar, como se fosse também um criminoso. Depois, cantarolou, dessa vez, com enorme vivacidade, feliz. Não havia mais sinais de tristeza ali, e foi-se passarinho, livre pela vida.

Laura, vendo o pássaro ir, percebeu, de repente, que deveria sair dali também, antes que fosse vista. Mas saiu pensativa. Se achava como aquele passarinho na gaiola, e, pela primeira vez, pensou em fugir, como ele, voando livre. Já era o segundo crime que desejava naquele dia, naquele caminho da Ladeira. Laura passou a pensar no passarinho e em si como a mesma coisa: estava se tornando criminosa, uma transgressora.

Marta Almeida: 13/05/2020