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PADRE REDONDO
 

 
      Isto foi quando eu ainda era miuçalha de gente, um mero esboço de guri. Nem calculo que idade teria, ali na bagagem dos ombros, àquela época. Nove, dez anos? Minha irmã Nazaré botou-me em cima do lombo de um cavalo, ela escanchada noutro, e lá fomos nós bater no badalado convento dos padres, em Baturité.
 
      Se bem me lembro, colégio composto de rapazes. Até havia um rapazelho da Costa Rica e muitos outros seminaristas estrangeiros. Os padres jesuítas eram os mandachuvas daquele paraíso de lugar. Embaixo, lá na barriga da cidade, ficava outro casarão de religiosas, um certo Salesianos, este povoado apenas com o belo sexo.
 
      O casarão dos jesuítas ficava arranchado no cimo da cidade, ainda pedaço de caminho, além da igreja matriz. Um sítio verde, lindo de se ver, cheinho de canaviais e árvores frutíferas. Antes de chegarmos àquela construção de aspecto medieval, já avistamos um sujeitão de batina, um frade, a cortar canas. Gente laboriosa... Ou falei abobrinha?
 
      Católica demais que era a minha mana, católica às pampas e quase carola, dou como certo que o objetivo único de minha irmã seria somente afagar de vista o misterioso ermitão. E também apertar a mão, talvez parlamentar bocadinho com o padre Redondo.
 
      Esse dito padre Redondo tinha fama de léguas e léguas, cartaz que ia além do Camará, por todo o Maciço de Baturité, de ser um santo padre. Todo o meu pessoal e quem lá em casa aportasse, com ênfase nos relevos daquele tal monte Everest, todo mundo do Camará e redondezas gabava que gabava as merecendências do sacerdote que só vivia em reclusão. 
 
      Sim, o padre Redondo era misterioso e, até ele ir desta para o Além, viveu no total isolamento. Diziam os filhos de Candinha que o homem obrava milagres, fazia cura e dormia com uma lajota de pedra a servir-lhe de travesseiro. Menino bocó, eu não acreditava, isto é, quero dizer, mas sempre já ia crendo. Deus me livre de, hoje em dia, contrariar a fé cartorial do povo do meu velho Maciço de Baturité. Deus me livre!   
 
      Gente das antigas e de alta consideração de todo o município de Baturité contava com a mão na Bíblia que o sacerdote era tranchã, vale dizer, um milagreiro. E um milagroso sempre recolhido, confinado no claustro, de quarentena efetiva e constante.
 
      Diz que, um dia, uma garotinha dos seus sete/oito anos, moradora na arborizada Praça da Matriz, olhou e viu o padre Redondo subindo a ladeira que dá para o convento, mas sem pôr os pés no chão. O metro e meio de pessoa do padre levitava, no ar. Ora essa!... O religioso, de batina e tudo, caminhava era na corcunda do vento. E se o homem só andava enfurnado, como é que ele estaria a flanar pelas ruas de Baturité? Mistério que não se sabe.
 
      Deus me livre de arguir nenhum contraditório num caso desses, que o padre Redondo não era de brincadeira, não. Tanto assim que, embora portasse perfeita saúde, a guria que viu o padre a levitar, uma semana depois, foi morar nas Mercês de Cima.
 
      Um mordomo, serviçal do convento, algo que o valha, nos recebeu na sala de espera com risinhos no lábio, muito gentilmente, e, após ser anunciado o caso ao que lá fomos nós, o gajo foi ter-se com o padre Redondo e anunciar a dupla visitante, a mana Nazaré e este um, aqui.
 
      De volta à sala da recepção, o serviçal nos serviu um lanche muito lauto: café com leite, pão amanteigado e frutas tropicais. Uma chiqueza de fartura. Nem merecíamos tanto mimo, mas foi assim que se deu.
 
      Bocados comidos e bebidos, num depois, eis que lá se vem o pedacinho de metro e meio do padre Redondo. Mas minha irmã e eu, sem retórica nenhuma, enxergamos aquele tico de padre numa figura hercúlea. Estatura baixinha, chocho de corpo, um vem-vem, aquele bichinho voador, o gaturamo. 
 
      Seria de origem estrangeira aquele metro e meio de pessoa tão gentil-homem? Ah, nunca pude saber. Sei é que o padre nos acolheu como se nós fôssemos uns   nobres do Reino Unido e, por fim, nos benzeu e recomendou às primícias dos céus, amém.
 
      Por conta dessa visita aos jesuítas, em Baturité, quase não escapo da sedução de minha irmã. Ela me queria, à fina força, deste pobre um fazer um padre de verdade. Reagi, relutei e, certa vez, lhe fiz o tiro de misericórdia:  – E padre se casa? Como a resposta foi não, de uma vez por todas sepultei a remota chance que tive de, um dia, eu virar um padreco.
 
 
Fort., 11/06/2020.

 
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 11/06/2020
Código do texto: T6974070
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