AS VIAGENS DE TREM – Parte 1
Aproximava-se o fim do ano, nós já sabíamos que a viagem para Espera Feliz era certa. As aulas terminariam no início de dezembro, mas meu irmão e eu começávamos o ensaio em meados de novembro, buscando inspiração para a viagem no “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira:
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Brincávamos decorando o poema, no qual nossa imaginação viajava, até o dia real da viagem. Um mês antes, começavam os preparativos, minha mãe fazia roupas novas, comprava os presentes e na véspera da viagem, preparava as comidinhas, que os adultos chamavam de matutagem: um verdadeiro banquete.
O trem partia da Estação Ferroviária da Leopoldina, às 20 horas. Saíamos duas horas antes, no automóvel de alguém, que nos levaria à estação, era por isso que os adultos diziam que “mineiro não perde o trem”. Nesse trajeto podíamos apreciar parte da cidade do Rio de Janeiro, à noite, com suas ruas e praças iluminadas; era um trajeto rápido, pois morávamos em Todos os Santos, mas nessa pequena viagem brincávamos com o poema:
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
A Estação Ferroviária era imensa para os nossos poucos anos de idade, um prédio suntuoso construído no início do século XX, com colunas imensas que nos permitiam passear a sua volta. Enquanto esperávamos a hora do embarque, um senhor muito bem vestido, de terno e gravata, contou-nos que a estação foi desenhada por um arquiteto escocês, chamado Robert Prentice. Disse também que a sua arquitetura era inspirada nas construções dos palácios ingleses, de estilo eclético e assimétrico, mas ele nos mostrou uma coisa interessante, a parte central do prédio só tinha continuidade para o lado direito, faltou o lado esquerdo. Achamos aquilo muito engraçado, o prédio ficou manco.
Chegada a hora de embarcar, acomodamo-nos no vagão-leito até amanhecer o dia, afinal seriam mais de 20 horas de viagem, mas o poema de Bandeira não saía da minha mente. O trem começou a movimentar-se: “Café com pão / Café com pão...”.
O poema de Manuel Bandeira povoou a minha mente por muitos anos, até que em 1986, Tom Jobim musicou-o para o disco Estrela da Vida Inteira, de Olívia Hime, e as minhas viagens ganharam notas musicais.