Deixados para morrer-2

O Atol das Rocas é a única formação semelhante em todo o oceano Atlântico. Mede 2,7 por 3,2 kilômetros, nas suas dimensões menor e maior. Atol é o nome que se dá a uma ilha circular, em que afloram somente as bordas, cujo interior contém água do mar. Não tem conexão com a plataforma continental, sendo uma formação vulcânica. Com o passar dos tempos, as aves marinhas que ali pousam em seus movimentos migratórios acumulam dejetos, que vão criando um substrato propício ao desenvolvimento de um rico bioma, culminando com o aparecimento das algas e dos corais, onde vivem inúmeras espécies, atraindo por sua vez os peixes e as tartarugas.

Tudo indica que o Atol das Rocas foi descoberto em 1503, devido ao naufrágio de uma das naus do português Gonçalo Coelho. Devido à sua exata posição somente ter sido determinada bastante tempo depois, muitos naufrágios sucederam-se. No século 19, foi o local do maior número de desastres marítimos em águas brasileiras. O perfil das rochas é baixo, resultando em que só podem ser avistadas a cerca de 10 milhas, de dia e com bom tempo. Em 1881, uma equipe de engenheiros e trabalhadores foi destacada para a construção do farol, que poria fim àquela verdadeira "emboscada" na rota dos navios que vinham da Europa para a América. Naquela ocasião, foram contados 18 cascos de navios soçobrados, o que não quer dizer que não tenham havido muitos mais. Um deles em particular, o "Mercurius", em março de 1870, com tripulação de 22 homens, chocou-se com os recifes. Apenas 6 tripulantes conseguiram salvar-se, permanecendo na ilha por 51 dias, padecendo horrores com a fome, fadiga e especialmente a sede, já que na ilha não há água potável, até serem resgatados. Sofreram também com as mordeduras de formigas venenosas, que haviam na ilha naquela época. Mais recentemente foi construido um farol todo metálico, de funcionamento automático, que substituiu o primeiro.

Nos primeiros tempos, morou na ilha por 10 anos um faroleiro de nome Saraiva, em companhia da sua espôsa. Acendia todas as tardes o farol, prevenindo as embarcações do traiçoeiro colar de corais que circunda o atol. Lá teve 3 filhos, sendo 2 mulheres, sem ajuda sequer de uma parteira, já que vivam totalmente isolados. Somente um navio os abastecia de tempos em tempos de água e mantimentos, já que ali não há solo cultivável. Certa vez, não se sabe o motivo, houve um grande atrazo no envio do navio, deixando o Saraiva e a sua família na penúria, sem alimentos e água potável. Sem comunicação com o continente e desesperados de sede e de fome, ferviam a água do mar em uma panela coberta com um chapéu de feltro, o qual era torcido para fornecer gotas de água aos seus lábios sequiosos. Já desesperançados, apelaram para todas as garrafas de vidro de que dispunham, colocando mensagens de socorro dentro das mesmas, pois sabiam que a corrente sub-equatorial as levaria para as costas do nordeste brasileiro. Assim, algumas chegaram às praias do Ceará, onde finalmente foi providenciado o socorro, a tempo de salvar o faroleiro e a sua família.

Em outra ocasião, o navio aportou em Fernando de Noronha, a 86 milhas de distância do atol, ali permanecendo um mês além do tempo previsto. Novamente o Saraiva e seus familiares ficaram à míngua. Inicialmente começaram uma dieta forçada composta somente de peixes, carangueijos e ovos de andorinha, até que seus aparelhos digestivos não suportaram mais. De diarréia passaram a sofrer de hemorragias intestinais, até que não se alimentaram mais, por 15 dias. Os gritos de fome das crianças alucinavam o pobre homem e sua espôsa, até que restaram apenas os gemidos de corpos prostrados. No limiar da morte, chegou o navio salvador. Ao adentrarem a casa branca do faroleiro, encontraram-nos todos estendidos nos pobres leitos, incapazes de sequer caminhar, manifestando a vida apenas no brilho dos olhos, tal o seu estado de desnutrição e desidratação. Providenciado o farol automático, o faroleiro e a sua família foram transferidos para a ilha da Rata, pertencente ao arquipélago de Fernando de Noronha. O Saraiva e seus familiares já estavam habituados à solidão e à uma vida pura e inocente. Suas filhas, nascidas e criadas em Rocas, eram o encanto da sua vida, com a sua graça ingênua e gozavam de esplêndida saúde. Ao tomar contato com o novo ambiente e outras pessoas, seus organismos sem defesas foram acometidos de crupe e faleceram pouco tempo depois. Em Fernando de Noronha, no alto da floresta, existem duas cruzes toscas que assinalam as sepulturas das filhinhas do faroleiro.

Esta é uma das antigas histórias dos dias heróicos e trágicos dos velhos faroleiros, que arriscavam as suas vidas e as de seus familiares para garantir a segurança da navegação.

Extraido e adaptado do livro de Geraldo Tollens Linck: "Velejando o Brasil" - de Porto Alegre ao Oiapoque, escrito em 1978.

Humberto DF
Enviado por Humberto DF em 20/10/2007
Reeditado em 20/10/2007
Código do texto: T702182