A CONVERSA COM O PRETO VELHO

“A conversa com o Preto Velho”

O encontro com o passado pode ser um instante alegre ou pode ser um instante amargo. Certa vez o encontro com o meu passado e minha origem não trouxe nenhum ressentimento, na verdade trouxe uma face comum e ao mesmo tempo desconhecida. A face negra e as histórias que ela experimentou me deixaram tocado. Seus precedentes são tão conturbados e tão atuais. Foram os traços do rosto do Preto Velho que fizeram o passado tocar o presente e que refizeram o presente de uma maneira poderosa e nítida? Ele me contou sobre seus caminhos que de um lado podem parecer tortos e por outro podem ser tratados como sendo bem certeiros, exatos e precisos. Meu passado encarnado naquele Preto trouxe consigo imagens que vivi e não lembrava até então e também imagens que desconhecia, histórias de aventuras, ousadias e proezas, aprendizados, rupturas. Ainda remexido por aquele reencontro, hoje enxergo pelos olhos dele e agora sei que as decisões que tomamos não são arbitrárias, as pessoas que se aproximaram não vieram do acaso, vieram por forças da história que são indizíveis, invisíveis, indecifráveis. Escrever um relato pessoal de nossa própria jornada é também seguir sem saber que segue uma linha histórica. Não me assustei ao perceber a bendita da predestinação. Precisei conhecer isso para ganhar um grau a mais de força, ganhar um rumo, um sentido para onde devo ir.

Dialogávamos durante a noite de domingo paulistana, depois de dois dias agitados e de uma semana que se arrastou devagar, paramos para alimentar o corpo e mais do que isso precisava saciar minha curiosidade. Escolhi um restaurante simplório. Nos sentamos de frente para a avenida que transbordava as luzes dos faróis dos carros e dos ônibus lotados. Em pleno domingo a noite e o asfalto fervilhando. Pedimos os alimentos e para abrir o apetite pedimos bebida. Eu optei pelo café com leite costumeiro enquanto ele pediu uma bebida quente, forte e intensa. Ele já havia tomado duas doses antes do nosso encontro, notei não pelo cheiro, não havia nenhum indício sensorial perceptível para reconhecer o que ele havia tomado. Notei pelo seu comportamento, meio perdido, meio em transe, alegre e ao mesmo tempo alerta, uma atenção que oscilava ente o estado vigio e a zonzeira que se confundia com sonolência. Me dei conta de que aquele preto estava em uma quase possessão. Enquanto nos preparávamos para o banquete eu o interroguei sobre um fato antigo, para entender a sua versão da história, uma vez que a memória visual das fotos dele em trajes incomuns eram incongruentes com o estilo de vida que ele ostentou na minha infância, desde aquele período as fotos me intrigavam. O destino final daquelas memórias visuais é desconhecido, mas me lembrava de quase todas elas. As fotos exibiam ele deitado na lama segurando uma espécie de espingarda com uma roupa com estampa camuflada; em continência para uma figura de alto escalão do governo; fazendo pose com roupa esportiva.

Interroguei o Preto Velho para entender a partir dele mesmo sua história de vida, pois os anos em que esteve ausente criaram um vazio oportuno para a imaginação povoar com histórias e informações inventadas a seu respeito. Ele me contou que foi por uma atitude atrevida que aconteceu aquilo, o sargento mandou ele correr ao ser chamado e por três vezes ele foi andando “- Eu sou civil. Não sou militar!” e com esse argumento bem lógico ele não precisaria obedecer as ordens dos militares. Ele estava vivendo o final dos anos de chumbo e o Brasil estava prestes a se redemocratizar . Ele não era militar até então e não tinha pretensão de ser, porém sua resposta assertiva lhe rendeu uma estadia em Brasília a contra gosto por um longo ano “ - Os militares eram tratados como cidadãos comuns, onde você ia tinha o filho de coronel de não sei de onde, outro era filho do sargento não sei das quantas ; via os soldados sendo presos porque furtavam bolacha do mercado...”

“- Eles não davam nada?” indaguei enquanto imaginava aquelas cenas distantes e improváveis.

“- Você tinha que comprar tudo. Nada, nada. As coisas eram caras, ficava uma boa parte das suas reservas lá...” então ele narrou sobre as privações e provações que viveu. Lá me contou sobre o que aprendeu: karatê, capoeira, futebol, boxe; sobre a falta de café sobre o fato de ter que bater continência para matar a vontade de uma semana sem a bebida negra sagrada “...cresci tomando café na mamadeira, ele riu...” engrossou mais a voz com uma entonação diferente para reproduzir a voz do sargento“- Nunca nenhum soldado me fez esse pedido. Toma uma xícara, não toma minha garrafa toda não. Esse café vai te sair caro inscrito. Esse café vai sair muito caro inscrito...”

Brasília foi o único lugar com vagas para ele servir ou talvez o melhor lugar para castiga-lo depois de uma insubordinação daquele tipo.

“- Foi bom? Você gostou da experiência?”

“- Se foi bom, não sei. Só sei que saí vivo.”

“- Você deveria ter continuado desenhando, pai. Lembro dos seus rabiscos técnicos, da coleção de livros sobre desenho técnico e mecânica.”

“- A única reserva que tinha era para o batalhão, eu não queria. Eu fiz todos os testes, as provas tudo aqui na rua do centro, passei mas não quis voltar. Não queria ficar longe dos meus.” Ele continuou falando sobre o condicionamento físico adquirido em Brasília e que depois a experiência lhe rendeu uma medalha em nono lugar na maratona de São Silvestre na qual participaram três mil e quinhentas pessoas. Ao final das indagações olhamos para a rua. Congestionada em plena noite de domingo, apesar disso um motoboy conseguiu bater em um carro e pensei:

“- Não é só no trânsito que existem penalidades, mas de algum modo somos penalizados quando tentamos seguir pela contramão da história dos nossos predecessores.”

Existem muitas histórias para serem contadas e muitas batalhas que foram travadas, houveram conquistas esparsas e propósitos soterrados quando olhamos para as histórias que correram. É muito estranho ter que olhar para trás para poder encontrar o sentido de direção adiante.

“- O carro tentou ultrapassar a moto.” O garçom respondeu para o meu pai.

Talvez não se trate de um paradoxo verdadeiro mas sim de uma perda da noção de continuidade do fio da história, da linha invisível que costura as histórias passadas para construir nosso presente que apesar de ser uma linha imperceptível é forte, resistente de tal forma que atravessa os anos e os interesses entre as gerações, ela é a herança real compartilhada entre pais e filhos. Há mais mãos escrevendo e editando os roteiros do nosso caminho pela terra, há muitas vozes ditando os nossos próximos atos no drama da vida humana. Se a nossa história for uma predestinação como no caso do Édipo, nossas iniciativas seriam nada mais nada menos do que atualizações de versões ancestrais, de papéis que não escolhemos e nem sequer sabemos que foram colocados e nós só os expiamos na existência e de uma maneira misteriosa os encarnamos e aderimos a eles sem nos darmos conta de que, parodiando a canção, somos “como nooossos anceestraaaaaaaais..” O mergulho na tarefa de conhecer a si mesmo vai além do ser, além do estado atual do que somos, se trata de lançar visão para o passado e enxergar tudo o que foram antes de nós mesmos e entender que há memórias primordiais que são guardadas e não dizem respeito a eventos soterrados no passado. Se tratam das matrizes de consciência ou até mesmo do que pode se tornar a nossa própria consciência.

Comemos, jogamos mais conversa fora e fui surpreendido com as origens da minha avó que foi dada para uma família quando era criança. Dada contra a vontade. Eu ali me sentindo como a outra ponta do fio da história e aquela face preta e envelhecida, surrada pelas desventuras da vida ia ditando os fatos.

“- Nossa pai! Que tristeza...que embaçado...” murmurei enquanto nosso diálogo ia sendo abafado pelas buzinas do lado de fora enquanto se sobressaia a voz da motorista dizendo para o motoboy que ele quebrou o retrovisor dela com o pé.

“- Ela foi separada dos irmãos...” e assim ele não se separou dos dele também quando recusou continuar no batalhão. Eu cogitava sobre todas aquelas novidades, sobre o fato de minha avó ter uma história tão dramática e sobre o paradoxo de ela ter decidido doar um dos primogênitos. Foram dois primogênitos, uma vez que ela deu luz às duas crianças.

Talvez o destino sele pactos invioláveis e nesse contrato nossa única atribuição seja assinar o papel no final e nada mais. A rebeldia não é nada mais nem nada menos do que um dos termos do contrato.

Saboreamos aquele banquete singelo e palatável, pagamos a conta e nos despedimos. Enquanto nos distanciávamos eu o observei caminhar e o vi alcançar uma viela pouco iluminada, bambeando para os lados, seguiu seu destino aquela figura excêntrica e tão misteriosa quanto sua história de vida. Eu peguei o metrô e ele foi de ônibus.