São Bernardo



Terminei de ler São Bernardo. De reler, pois há tempos já o tinha lido. O velho Graça era mesmo um mestre. Que história. Seca. Feroz. E a figura de Madalena, tão fresca, bela e frágil como as flores dos paus d'arco que ela gostava tanto. E como uma flor, ela vai se definhando devido ao ciúme doentio de Paulo Honório. Lembrei-me de Otelo e Desdêmona. No drama de Shakespeare, Iago é o antagonista. No de Graciliano, a ignorância, a desconfiança de Paulo Honório são os elementos de destruição. O inimigo do sertanejo rude é ele mesmo. Imaginei-o com nitidez, andando a passos largos madrugada adentro, o peito cheio de coisas a serem expurgadas e a boca travada, seca de palavras. Paulo Honório era um infeliz. Não foi a infância roubada, a falta de estudos nem a Revolução. Ele fez seu nome e ganhou respeito (diga-se, medo) à custa de sangue e trapaça. Paulo Honório, de mãos enormes e calejadas, avesso ao comunismo e às corujas, não merecia o afeto de Madalena.
Não li a crítica ao final do livro. Gosto de ter minhas próprias ideias antes de reuni-las às dos outros, como dizia Hannah Arendt. Então eu prefiro escrever essa crônica modesta, sem palavras difíceis nem análises técnicas porque isso eu não sei fazer. Cursei duas cadeiras de Teoria da Literatura no curso de Letras mas não tirei o devido proveito.
Apois; temos, no romance, Madalena, Rosa, dona Glória e a velha Margarida, as mulheres da vida de Paulo Honório. A estrutura da história é essa, mulheres à sombra de um homem. Mas Madalena tem luz própria, pensa por si mesma, ela se destaca e isso incomoda o homem. Mulher bonita, jovem, letrada, tudo que ele não é. Então o que resta ao homem fazer? Oprimi-la. Usar de violência psicológica. Foi assim que se formou o patriarcado e assim ele se mantém até hoje. Porque é óbvio que as mulheres somos mais inteligentes que os homens. Mas carecemos de força física. Não somos dadas a brutalidades. E é aí que o macho se cria. Paulo Honório imaginava-se traído e oprimia Madalena. Insultava-a. Planejava matá-la. Ela é a culpadas pela sua loucura. Conhecem essa história, leitores? Está todos os dias nos jornais. O que Madalena fez não foi nada mais que libertar-se do sofrimento que lhe impunha o marido, saída desesperada para as mulheres daquele tempo. Hoje somos independentes, temos leis que nos protegem mas que infelizmente se limitam ao papel. A cada dez minutos, no Brasil, um Paulo Honório mata uma Madalena. Só em 2019, foram 1.314 feminicídios. Números. Os nomes, as histórias, os sonhos dessas mulheres viraram estatísticas. Mas quando uma florzinha mata o marido, é um Deus nos acuda. Monstro, víbora, lobo em pele de cordeiro! Um homem tão bom, homem de Deus, fazia tudo por ela! Pois sabem o que eu acho de mulheres matarem homens? Eu acho é pouco. Minha heroína não é Iracema, nem Helena ou Simá. Eu gosto é da Guidinha do Poço. 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 29/08/2020
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