O Senhor É Muito Sensível!

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Tem dia que é melhor não sair de casa, ainda mais ao final de um para ir ao dentista tratar canal. Foi o que fiz naquela inesquecível quinta-feira. Meu horário foi um encaixe de final de expediente com a especialista em canal que só atende neste dia da semana. Foi no consultório da minha dentista, que fizera curativo dois dias antes, para a necessidade de tratamento das raízes, pois a dor era forte.

Pensei em ir de moto, mas por intuição fui de carro, pois estava esfriando, estamos no inverno, e aqui, na praia, venta bastante e a temperatura cai rapidamente. Foi a melhor coisa que fiz.

Meu horário era o ultimo do dia, às 17 horas. Cheguei dez minutos antes, entrei na sala de espera vazia e aguardei. Minutos depois saiu a paciente atendida antes da minha sessão e pensei:

- Vamos começar e terminar logo. Mal sabia eu o que me aguardava!

A Doutora Especialista em Canal passou por mim e foi conversar com a paciente junto à secretária. Estava com as costas arqueadas e os passos pesados. Está cansada, deduzi.

- Ser o paciente do último horário do dia para canal, é mal! - conjecturei. Ela voltou a sua sala, com a mesma silhueta, e sem me ver. Preocupei-me.

Depois, veio ao meu encontro e com voz rouca me chamou:

- Vamos lá Sr. Fernando? Acompanhei-a.

Ao entrar em seu consultório, diz quase em um sussurro:

-Vou tirar um raio-X do dente, para ver a situação.

Colocou-me o colete de chumbo e com o suporte da chapa fotográfica já dentro da minha boca, ajeitou o aparelho na posição do dente doente. Foi para trás da porta e apertou o botão do controle. Fez um som curto agudo como o de uma campainha rouca, como ela. Estavam todos cansados àquela hora do dia.

-Pode se sentar na cadeira agora, Seu Fernando!

Sentei-me e ela, ao meu lado. Apesar de estarem somente seus olhos visíveis, escondida por máscara, óculos e touca, sua expressão e seu piscar demonstravam exaustão.

-Essa máscara está me "matando". Posso lhe fazer uma pergunta Seu Fernando?

-Claro!

-O senhor está bem de saúde?

Demorei segundos para responder a inesperada pergunta e lhe retribui a questão:

-Por quê? Pareço doente?

-Não, claro que não! É que passei o dia com estas máscaras e está difícil de respirar, e agora ao final dos trabalhos, se eu pudesse usar só a de cobertura, seria melhor.

Usava duas máscaras: uma especial, na cor azul e outra branca descartável, sobreposta a ela.

-Sim, claro! Sem problema! Coincidentemente acabei de fazer o teste do COVID-19 e deu negativo.

Retirou-as do rosto e deu um grande suspiro de alívio. Colocou a nova máscara descartável, touca de pano, óculos, luvas e pronta para a última batalha do dia.

-Agora sim, estou bem melhor. Consigo respirar.

-Quantos canais fez hoje?

-Quatro! Cinco com o seu.

-Bastante, hein?

-Sim!

Começou os preparativos: olhou a radiografia, separou os instrumentos, pegou a seringa e injetou a anestesia no dente a ser tratado. Em seguida, iniciou a retirada da proteção parcial dele com o motorzinho, que doeu, pois gemi.

-Está doendo? Vou reforçar a anestesia. O senhor é bem sensível, hein seu Fernando!

-Por favor, Doutora, pode dar uma dose forte, pois sou meio resistente à anestesia! Ela aplicou o reforço anestésico.

Pois é, descobri essa minha condição, quando fiz a operação de duas hérnias inguinais e acordei no meio dela. Fiquei desesperado, pois não sentia nada do quadril para baixo, como se fosse um aleijado. O anestesista começou a falar comigo e me dopou novamente. Depois no quarto, após a cirurgia e já bem desperto, ele veio me dizer que nunca vira uma pessoa lutar tanto para ficar acordada como eu.

- Você parece não querer perder o controle - disse-me o médico na época.

O zumbido fino do motorzinho reiniciou em meu dente, agora sem mais dor. E para tratá-lo ela começou a retirar o curativo feito dias atrás, chegando ao início das raízes que eram três. Duas de fácil acesso e outra bem fina e profunda, que poderia oferecer mais dificuldade segundo ela.

Pegou uma broca comprida e fina e iniciou a raspagem de uma das raízes mais gordas. Senti leves fisgadas de dor, manifestadas pela minha careta.

- Doeu? Apliquei dose dupla de anestésico e não deveria doer, Seu Fernando. É muita sensibilidade a do senhor!

- Doutora, não judia do velhinho! - brinquei com ela.

- Disse-lhe que sou meio resistente a anestésico e pelo visto é o que está acontecendo.

-Vamos seguir com cuidado, passando a broca bem devagar, pode ser Seu Fernando?

Caramba, vai ser hoje que vou sofrer na cadeira do dentista, o que não me acontecia há muito, muito tempo - pensei comigo.

-Toca Doutora! - respondi-lhe valentemente.

A broca raspou devagar a raiz, que doeu no início, mas depois, com a sua gradual retirada, melhorou e ficou mais suportável. Concluiu uma. A dor passou um pouco, mas a região latejava. Relaxei na cadeira, pois fiquei todo enrijecido e tenso durante o processo torturante e dolorido.

-Vamos para a outra mais "gordinha", Seu Fernando, pode ser?

-Sim, vamos! Dá para aguentar assim - continuei valente.

Segunda raiz, a mesma dor. Terminou também, mas com um latejar mais forte.

-Duas já feitas! Agora a mais estreita. Vamos, Seu Fernando?

-Fazer o que, né, Doutora? Vamos ver como me comporto - respondi já meio baqueado pelo prolongado sofrimento.

Ela trocou a broca por uma mais fina e comprida e introduziu na cavidade. De imediato senti um choque e profunda dor. Gemi forte e alto!

-Doeu, Seu Fernando? Esquisito! Se inserir esse outro equipamento, o senhor sente alguma coisa?

-Não, Doutora. Está judiando bastante do velhinho, hein!

Ela introduziu de novo a fina broca com o motor e a mesma dor forte.

- O equipamento está dando choque no senhor, Seu Fernando. Incrível!

-Choque, Doutora?

-Sim! Vamos ver se aplicando mais anestésico local, conseguimos. Se não, teremos que adiar essa raiz para a semana que vem.

-OK - respondi. O dente latejava muito. Eu ali deitado me sentia a mercê da bendita Doutora Especialista em Canal, que judiava do velhinho "sensível".

Aplicou o remédio na raiz resistente, mas de novo o choque e muita dor no rodar devagar do motorzinho com a fina broca. Fiz careta feia e gemido forte, mas seguiu ela um pouco mais, querendo ver se conseguia finalizar, apesar do sofrimento estampado em meu rosto. Quando parou, eu lhe disse:

-Doutora, está doendo e latejando muito! Acho que hoje não dá mais, não acha? - perguntei-lhe implorando, pois já estava zonzo de dor.

-Pois é, Seu Fernando, melhor pararmos por hoje. Estamos aqui há quase uma hora e meia e estou exausta. E, judiando do senhor, não é?

-Sim! Semana que vem tenho a primeira hora da quinta-feira. Melhor! E a senhora venha com dose quadrupla de anestesia, por favor, para não judiar do velhinho "sensível", por favor - pedi-lhe!

-O senhor é muito sensível mesmo, Seu Fernando - respondeu sorridentemente exausta.

Levantei-me da cadeira com o dente latejando, boca torta e tonto, a ponto de andar desequilibrado como um bêbado. Fui para casa pensando no que me dissera a profissional sobre ser "muito sensível". E de carro, ainda bem, pois seria difícil pilotar a moto naquele meu estado.

E lhes digo:

- Pimenta nos olhos ou dentes dos outros não arde, não é mesmo?

Vamos ver como será a próxima sessão de tortura dentária. Aguardem!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 02/09/2020
Código do texto: T7052923
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